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O vírus nos tempos de cólera, ou Essas desgraças vão passar

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Vivemos num país surreal em que um tosco e autoritário capitão, elevado à condi-ção de presidente, surta diariamente em público e pelas redes sociais. Mente e chantageia num jogo de imposturas que eleva o estresse da sociedade, ao mesmo tempo em que flerta abertamente com um golpe. Mantem sua tropa mobilizada e dá demonstrações de que testa os limites da institucionalidade para impor um regime de força. Como se fosse um ator, encena um teatro do absurdo com gestos obscenos e palavras ofensivas, diante dos aplausos de sua claque. A oposição se cala, os demais poderes se omitem.

Em meio a este cenário social e psicologicamente exasperado, dominado pela cólera dos agentes políticos, entra em cena um novo personagem. Vindo do espaço, o Covid-19 atropela brutalmente a realidade e coloca a vida cotidiana dos indivíduos em suspen-são. De repente surge uma ameaça maior e todos devem ficar trancados em casa, ninguém pode sair porque há um novo vírus maligno solto nas ruas. À depressão política se soma a depressão psíquica causada por uma enfermidade mortal que se alastra por contato, causando medo e ansiedade.

A terra saiu dos eixos e entrou em transe, conforme mostrou Glauber Rocha com seu filme em outro momento crucial, em plena ditadura. O isolamento social provocou o surgimento de uma nova comunidade, a de pessoas tensas e amedrontadas. Algumas usam máscaras, atitude desaconselhada pelos médicos. Elas circulam pelos aeroportos e desfilam pelas ruas. Numa cidade sitiada, o estresse coletivo espalha a doença do alarmismo, doutrina que se propaga velozmente pelo circuito nervoso das redes sociais.

Enredo típico para um romance de Gabriel Garcia Márques ou de seu contemporâneo, o argentino Julio Cortázar, dois dos grandes mestres do chamado realismo mágico que revolucionou a literatura da América Latina nas décadas de 70/80 do século passa-do. O colombiano, Nobel de Literatura, despontou com “Cem anos de Solidão” e se consagrou com “O amor nos tempos de cólera”, título que me veio à cabeça quando comecei a escrever este artigo. Não pelo amor, mas pela cólera. Já o argentino deixou em “Bestiário”, e sobretudo em ‘A casa tomada” um dos sete contos do livro, o fascínio de sua prosa estranha e misteriosa.

São autores que nos colocam diante do insólito e nos pedem naturalmente, aos seus leitores, que acreditemos no que escreveram. No nosso conturbado país a realidade tornou-se fantástica. Um respeitável jurista de família quatrocentona, Miguel Reale, co-autor do pedido de impeachment da presidenta Dilma, vem agora mui respeitosamente pedir ao Ministério Público que submeta o presidente a um exame de sanidade mental para o exercício do cargo. Teme que seja um psicopata. A outra autora do pedido, deputada Janaína Paschoal, também pulou fora do barco, dizendo que “esse senhor” tem que sair da presidência.

Bolsonaro pode também ser acusado de crime por assumir o risco de expor outras pessoas ao contágio do coronavírus, como fez de maneira ensandecida nas manifestações de Brasília. São muitos os crimes que justificam a abertura de um pedido de impe-achment. Em sua ofensiva contra as instituições, o capitão conta com a sustentação de uma “ralé”, conforme definiu o cientista político Luiz Werneck Vianna. Uma fração so-cial formada por ressentidos de diferentes classes sociais, que se tornou sua base de ope-rações. Para o sociólogo, trata-se de um projeto de poder pessoal, sem um programa polí-tico.

A súbita aparição da pandemia pelo Covid-19 deslocou o eixo da sociedade, que imergiu num estado de suspensão, tal qual os mercados financeiros. Os indivíduos foram isolados e confinados, tiveram cassado o direito de apertar a mão de seu semelhante, talvez um dos gestos mais caros aos seres humanos. Os poucos que saem às ruas tratam somente de tarefas inadiáveis. Até o Pilates dos velhinhos foi suspenso. Nos cafés, ponto tradicional de confraternização e bate-papo, passou a reinar a desconfiança. Se o sujeito tosse, o outro se afasta.

Há os que não se conformam com as novas regras sociais. Tramam pelos cantos uma reação subversiva antes que o país mergulhe nas trevas da ingovernabilidade. Em sua maioria são senhores idosos, integrantes de grupos de risco. Cabeças branquinhas, são os mais vigiados pelas famílias. Concluíram que Bolsonaro e o Coronavírus são almas gê-meas, variações de uma mesma espécie maligna de vírus. Os dois devem ser combatidos e eliminados juntos.

Encontrei um integrante desta trupe enquanto tomava café numa padaria em Copa-cabana. Ele entrou afobado, procurando o chamado dispenser, dispositivo para álcool e gel fixado na parede. Indiquei o local e fiz uma brincadeira. Enquanto esfregava calorosamente as mãos, ele me disse: “Quero morrer não, amigo. Primeiro foi a cólera, depois o vírus. Quero continuar vivo para pirraçar mais um pouco. Essas desgraças vão passar”

*Jornalista e escritor