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Alvim não esteve em Auschwitz

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É possível afirmar com toda certeza que o cidadão Roberto Rego Pinheiro, que adotou o nome artístico de Roberto Alvim, não esteve em Auschwitz-Birkenau, o campo de extermínio da Alemanha hitlerista no sul da Polônia. Provável também que não tenha lido nenhum dos milhares de relatos dos que lá estiveram. Bastaria um, o pungente tes-temunho deixado pelo italiano Primo Levi em seu clássico “É isto um homem?” para saber que seu estudado gesto de afronta editando um vídeo para fazer a apologia do nazismo não seria tolerado.

Num filme de seis minutos ele imita seu mentor Joseph Goebbels, ministro da Propaganda e da Informação de Adolf Hitler, nos gestos, no olhar, na entonação de voz, na empáfia. Em sua meticulosa composição da cena, o dublê de ator desprezou a memó-ria e a consciência do horror deixadas pela selvagem máquina de destruição nazista. Atropelado pelo repúdio imediato ao seu ato de exibicionismo, foi varrido de cena e despencou no abismo, deixando no ar o cheiro do gás venenoso usado para matar os prisioneiros do campo.

Mesmo num país governado por Jair Messias Bolsonaro, que incorpora a tríade de Deus, pátria e família de Plinio Salgado, e trata com reverência e exaltação os torturado-res, a farsa de Alvim, repetindo as palavras de Goebbels, extrapolou. “A arte brasileira (seguindo a matriz alemã) da próxima década será heroica, imperativa, nacionalista e vinculada às aspirações urgentes de nosso povo, ou então não será nada”, disseram em coro Goebbels e Alvim. O primeiro com o retrato de Hitler sobre sua cabeça, o segundo com a foto de Bolsonaro a contemplá-lo.

De líder de uma tropa agressiva de profissionais conservadores que ele convocou para criar uma “máquina de guerra cultural” e revolucionar a arte no Brasil, o secretário especial de Cultura tornou-se um problema incontornável para Bolsonaro, ao expor para o mundo a cara do fascismo brasileiro. Foi despachado. Segundo o site chapa branca “O Antagonista”, integrante das hostes moristas, ele está fazendo as malas para se auto exi-lar em Paris. Na hora da derrota final, fechado no bunker, Goebbels suicidou-se junto com a mulher e antes matou os seis filhos com ampolas de cianureto.

Convertido à extrema direita, o dramaturgo deu demonstração de menosprezar o impacto do interminável projeto de extermínio executado durante cinco anos naquele campo que foi considerado o símbolo maior do Holocausto, onde morreram 1.3 milhão de prisioneiros. Em 1979 suas instalações foram declaradas Patrimônio Universal pela Unesco. E na próxima segunda feira, dia 27, serão realizadas cerimõnias em todo o mundo lembrando os 75 anos de libertação do campo pelas tropas soviéticas, em janeiro de 1945.

Definitivamente, Alvim não esteve em Auschwitz, nem para uma visita turística. Mas para saber o que lá se passou poderia ter consultado um autor alemão de sua intimi-dade, cujo texto ele copiou. Ou escolhido para leitura algum volume da enorme produ-ção literária e histórica gerada pela experiência do campo. Entre os relatos dos que lá estiveram há verdadeiras obras-primas escritas por autores como Elie Wiesel, Imre Kertész e Primo Levi.

Os dois primeiros foram contemplados com o Nobel, um da Paz e o outro de Lite-ratura. Levi deixou um clássico da literatura contemporânea, com sua amarga indagação do que é um homem vivendo naquelas condições. Deportado para Auschwitz em 1944, o químico italiano Primo Levi escreveu: “Jazíamos num mundo de mortos e de fantas-mas. O último vestígio de civilização desapareceu ao redor e dentro de nós. A obra de embrutecimento empreendida pelos alemães triunfantes tinha sido levada ao seu término pelos alemães derrotados (...)

Nascido em Budapeste, o húngaro Imre Kertész foi deportado para Auschwitz e Buchenwald também em 1944. Autor de “Eu, um outro” e “Sem destino”, escreveu em seu relato: “Ao final daquele dia senti pela primeira vez que algo havia se degradado no meu interior. E a partir daquele dia todas as manhãs eu me levantava como o pensamen-to de que aquela seria a última manhã em que me levantaria.”

Os caminhos são de ruínas, mas há delicadezas em suas frases que preservam a me-mória do horror. O Prêmio Nacional das Artes, anunciado pelo ex-secretário Roberto Alvim, foi para o lixo momentaneamente. Sua queda impôs limites mas nada muda no cenário de autoritarismo do governo, que segue em sua escalada.

*Jornalista e escritor