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Sensação de vertigem pela democracia

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Não fosse por uma sensação de vertigem, trazida por uma inesperada indicação ao Oscar de um documentário brasileiro que mostra as vísceras do processo que levou ao impeachment da presidente Dilma Rousseff, o golpe que desaguou na eleição de Bolsonaro em 2018, o ano de 2020 teria começado com mais do mesmo. As cortinas se abriram com claras indicações de que a escalada de crimes e boçalidades reinantes seriam mantidas pelos próximos meses, nesta insólita simbiose de governo que está aí, uma mistura de mentiras, bolsonarismo e integralismo.

Anna Carolina Neves, uma menina negra de oito anos, foi atingida por um disparo na cabeça quando se encontrava no sofá de sua casa, em Belfort Roxo, região da Baixa-da Fluminense. Distante dali, em Botafogo, bairro da Zona Sul do Rio, um grupo de artistas, pesquisadores e todos quantos prezam a liberdade de criação, juntaram-se para fazer um protesto diante da Casa de Rui Barbosa, o mais recente alvo do terrorismo cultural imposto ao país. Os novos ocupantes trancaram as portas da casa, referência nas áreas de pesquisas e memória, e o protesto foi feito na rua.

Os fundamentalistas do regime, homens que declararam guerra ao chamado marxismo cultural, fizeram um expurgo ideológico na antiga casa do ilustre pensador baiano, adepto da revolução bolchevique, provavelmente, demitindo seus principais pensadores. Se vivo, Rui protestaria, iria às cortes internacionais. Decorrido um ano de governo, es-tes dois episódios revelam que a perplexidade ainda não passou. A cada momento somos surpreendidos com novas agressões e retrocessos, nesta marcha ruidosa em que o país avança para trás.

Os mais pessimistas espalham versos pela internet difundindo presságios de que dias piores virão. Poetas veem a formação de nuvens escuras de tempestades cobrindo o horizonte. Mas eis que um acontecimento cinematográfico inesperado, vindo da terra do absolutista Donald Trump, o terrorista número 1 do mundo, muda repentinamente a temperatura ambiente. A Academia de Hollywood incluiu na lista final dos cinco documentários indicados ao Oscar, “Democracia em Vertigem”, o comovente e revelador filme de Petra Costa, produção da Netflix, que narra uma história de intrigas, maquinações, corrupção e assalto ao poder que transcende o Brasil.

A notícia foi recebida em Brasília como se a capital tivesse sido atingida por um drone, o veículo de terror preferido de Trump. O impacto da escolha foi grande e abriu uma discussão neste momento de perplexidade em que a sociedade busca formas e meios para barrar os atos de intolerância do governo Bolsonaro, que destroem indiscriminadamente a cultura, o meio ambiente, a economia, a educação, o que tiver pela frente, menos as igrejas evangélicas e os grupos de milicianos. A esta altura, a produção do fil-me já havia perdido as esperanças de ver o documentário ocupar uma vaga entre os fina-listas.

Para Petra Costa, a diretora, a indicação é importante porque contribui para unir todos os esforços que incentivem ações políticas e culturais no sentido de resgatar o estado de direito, antes que seja tarde demais. É esta a questão. Chegou para a oposição o momento de usar as leis, os espaços, todos os instrumentos da democracia para impossibilitar que venham aí dias piores. O país não suportará um novo golpe autoritário.

Herdeira do fundador de uma construtora envolvida na Lava Jato, a Andrade Gutierrez, filha de militantes políticos que participaram da luta armada contra a ditadura, Petra assume um tom intimista e confessional em seu documentário. Intercala imagens inéditas e flash-backs para mostrar a explosão e os bastidores dos acontecimentos que vão da eleição de Lula e os escândalos de corrupção que envolveram o PT às tramas palacianas nos momentos que antecedem a votação do impeachment de Dilma.

Com duas indicações surpreendentes, um filme coreano e um documentário brasileiro, a Academia de Hollywood assume um tom subversivo num momento em que o planeta se volta para a direita, com o crescimento de países nos quais predomina a intolerância racial, religiosa e de gênero. “Os cineastas criam filmes sobre seus sonhos e obsessões pessoais”, disse Bong Joon-Ho, diretor de “Parasita”, o coreano que concorre a uma inédita premiação do Oscar principal.

Já Petra Costa leva a mulher, e o cinema nacional e latino-americano a uma premiação também inédita, que pode contribuir para o país sair, de forma vertiginosa ou não, o ritmo é imprevisível, do impasse que o paralisa. E encontrar, entre outras coisas, uma resposta para a pergunta crucial que paira sobre todas as consciências democráticas: quem mandou matar Marielle Franco.

*Jornalista e escritor