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Brasil e Argentina jogam o futuro da América

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Velhos rivais, Brasil e Argentina entrarão em campo em janeiro de 2020, abrindo uma nova década, protagonizando uma disputa por liderança política e econômica sem precedentes, com influência determinante para o futuro dos demais países de uma América que entrou em convulsão. Aliados na feroz repressão que marcou o período das ditaduras no Cone Sul, os dois países defendem agora projetos antagônicos nos campos da economia e dos direitos humanos e sociais, expondo uma divergência que jamais tiveram, mesmo nos momentos mais conturbados, seja no futebol ou no campo nuclear.

A disputa principal se travará no campo da economia entre o liberalismo selvagem de Paulo Guedes, aquele pró AI-5, e Martín Guzmán, respeitado economista heterodoxo da Universidade de Columbia, que assumiu a pasta da economia com novas ideias. A Argentina vive um momento crítico, com a volta do peronismo ao poder liderado por Alberto Fernández, um político pragmático de esquerda, depois da fracassada gestão liberal de Mauricio Macri, com sua herança de dívidas, inflação e desemprego elevados.

Por todo o continente, o neoliberalismo deixou escombros em seu rastro. Em sua gestão de protetor dos mercados e destruidor de empregos, Guedes assinou uma medida que congelou o salário mínimo, encerrando uma política iniciada por Lula de reajustes anuais acima da inflação. O número de trabalhadores desempregados é recorde, 12,4 milhões, que se somam aos 4,6 milhões de desalentados, que deixaram de procurar em-prego. Não possuem uma garantia mínima para sua sobrevivência. No horizonte de sua visão, nenhuma medida para taxar riquezas, heranças ou elevação de impostos sobre propriedades e os mais ricos.

Na direção oposta, Guzmán está interessado em mudar as coisas no mundo real da economia e vai posicionar a Argentina neste rumo. Para ele, a maneira convencional de austeridade comandada pelo FMI e Banco Mundial nos últimos anos prioriza os interesses dos credores privados em detrimento de todos os demais grupos sociais, sejam eles cidadãos empregados ou aposentados. Para ele isto não funciona. O país precisa voltar a crescer, único resultado que lhe permitirá pagar os credores.

Os casos da Grécia e outros países comprovam o fracasso desta receita. Medidas de arrocho resultaram em quedas elevadas do PIB e novos pedidos de calotes dos países endividados, que não conseguem romper o círculo. Discípulo de Joseph Stiglitz, laureado com o Nobel, Guzmán busca uma chance de mostrar que uma nova abordagem econômica mais heterodoxa pode funcionar e abrir caminho para outros países.

Ele já se movimenta para tentar adiantar as negociações com os credores da dívida de mais de US$ 100 bilhões, para que o país possa voltar a crescer e gerar emprego. Austeridade não gera crescimento. Os credores não devem ter preferência sobre os aposentados. O presidente Alberto Fernández enviou ao Congresso um Projeto de Lei de Emergência Econômica e Solidariedade Social, que inclui medidas para aumentar aposentadorias, pensões e salários, e elevação de impostos para pessoas físicas e jurídicas.

A Argentina de Peron e Gardel, das avós da Praça de Maio e do julgamento e condenação de militares torturadores, retoma sua vocação histórica ratificando compromis-sos sociais e com a defesa dos direitos humanos. Sua afirmação política no campo democrático no cenário sul-americano vai levá-la a se confrontar com o tosco fascismo tupiniquim liderado pelo capitão Bolsonaro e seu grupo neoliberal, evangélico e familiar de milicianos, compondo um governo agressivo, provocador e conservador.

Ao tomar posse, Fernández declarou seu compromisso com o respeito à verdade e à memória histórica ao anunciar a presença de três herdeiros de desaparecidos pelo regime militar em seu governo: o ministro do interior, Eduardo Wado de Pedro; o do Meio Ambiente, Juan Cabandié, e a titular do Instituto Nacional contra a Discriminação, a Xeno-fobia e o Racismo, Victoria Donda Pérez.

Os pais do advogado Eduardo, 43 anos, militantes de um grupo armado peronista, foram sequestrados e assassinados pela ditadura militar. Juan, 41 anos, deputado nacional, nasceu dentro da Escola Superior de Mecânica da Armada, a ESMA, maior centro de prisão e tortura da ditadura. Victoria, 42, advogada e ativista de direitos humanos, também nasceu na ESMA. Seus pais foram assassinados e desapareceram. As avós da Praça de Maio chegaram a ela através de uma denúncia anônima.

Um histórico de brutalidades que compartilhamos, ignorado pelo atual governo brasileiro. Bolsonaro faz o elogio aberto e declarado da tortura e tem como herói o coronel Brilhante Ulstra, seu mais ilustre praticante nos Doicodis da ditadura. Nesta Copa América, os brasileiros torcerão pelo sucesso do time de Messi.

Jornalista e escritor