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O torturador és tu

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O vibrante coro de centenas de mulheres chilenas reunidas na praça Itália, no centro de Santiago, criou uma manifestação coreográfica impactante que a internet espalhou pelo mundo. “O violador és tu”, elas levantam a voz e protestam contra os abusos e violências sofridos pelas mulheres. Algumas têm os olhos vendados, outras o rosto mar-cado com riscos de tinta vermelha. Como se estivessem no palco encenando um espetáculo, elas aprumam o corpo com altivez e apontam as mãos para o agressor invisível, repetindo em tom de ameaça: “O estuprador és tu”.

O grito de guerra das mulheres chilenas ecoa em Paris, Madri, Rio de Janeiro e outras capitais como uma advertência contra governos que reprimem, estupram e torturam, com a certeza de que manterão seus crimes impunes perante a História. Uma história de impunidade que volta a se repetir, desta vez com o jornalista e historiador Aluízio Palmar, ex-preso político banido do país pela ditadura militar, que se encontra na insólita situação de ser processado por um torturador que ele denunciou.

Para desmascarar essa farsa não basta ao jornalista enquadrar o ex-tenente do Exército e hoje advogado Mário Espedito Ostrovski, o infame torturador que agora o processa. Além de levá-lo a juízo, cinquenta anos depois dos atos comprovados de tortura praticados no 1º Batalhão de Fronteiras, em Foz do Iguaçu, Paraná, Aluízio terá a oportunidade de olhar na cara de Ostrovski e lhe dizer: “O torturador és tu”.

A infame inversão de papéis se inscreve no rol de aberrações e agressões vindas de ministros, filhos e áulicos bolsonaristas, que diariamente atormentam a vida dos brasileiros com escândalos, mentiras e provocações. A lógica do regime é a exaltação do ódio e da celebração do culto a Tanatos, com a negação da cultura e do civilizado. O tenente Ostrovski é um destes personagens, sabe o que está fazendo, como também sabe e se recorda do que fez.

Trata-se um advogado que se comporta com o cinismo garantido pela impunidade de um tenente autorizado a torturar. Os fatos que fizeram dele um torturador estão registrados em documentos, livros e arquivos. E no testemunho de pessoas ainda vivas que o viram em ação. Sentiram o peso de suas mãos e a dor penetrante dos choques elétricos transmitidos pela “maricota,” a maquininha de dar choques que ele acionava com grande prazer nas sessões de tortura.

Em 1969, Mário Espedito serviu no Batalhão de Fronteiras em Foz do Iguaçu. Para lá foram levados Isabel Fávero, uma jovem professora de escola rural no interior do Paraná e seu marido, Luís André, acusados de pertencer à VAR-Palmares, organização que se opunha à ditadura. Grávida de dois meses, Isabel sofreu choques elétricos nos mamilos e na genitália. Sangrou durante dias e acabou abortando. Em seu depoimento ao Centro de Direitos Humanos e Memória Popular de Foz do Iguaçu, que se encontra no Youtube, ela lembra detalhes. Diz que o tenente a humilhava e a chamava de “cadela, vagabunda e puta.”

Ostrovski está entre os torturadores denunciados no projeto Brasil Nunca Mais, coordenado pelo cardeal dom Paulo Evaristo Arns e no relatório final da Comissão Nacional da Verdade. Integrou a segunda seção de informações do Batalhão de Foz do Iguaçu no início da década de 1970, quando atuou em operações militares e teve partici-pação em casos de detenção ilegal e tortura.

Sua ficha é longa e secreta. A impunidade lhe dava este privilégio. Em junho de 2013 um ato de protesto na forma de escracho em frente ao edifício em que mantém seu escritório de advocacia, revelou o segredo. Sua neta de 15 anos cobrou explicações sobre as denúncias. No processo contra Aluízio Palmar e o Centro de Direitos Humanos e Memória Popular, ele pede indenização por danos morais no valor de R$ 39 mil.

Assim como os filhos e netos de mortos e desaparecidos, os filhos e netos de torturadores também podem contribuir para a revelação da história, como acaba de fazer a neta de Ostrovski. Criador do site Documentos Revelados, o maior acervo de documentos sobre o período da ditadura militar no Brasil, Aluízio Palmar é um combativo pesquisador e denunciante de violações de direitos humanos.

Em 1985, publicou o livro “Onde foi que vocês enterraram nossos mortos”. Entre os citados, lá esta o ex-tenente e advogado, a quem ele poderá dizer no tribunal, 50 anos depois, que “o torturador és tu.”

*Jornalista e escritor