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O Marighella da História está vivo

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Um balanço da trajetória política e existencial do líder revolucionário Carlos Marighella, que abrange mais de 40 anos da sangrenta e conturbada história do século pas-sado, mostra que este apaixonado militante comunista, que morreu aos 57 anos, percor-reu o mundo, lutou em várias frentes, experimentou diversos nomes e diferentes vidas, todas unidas pelo fio da luta pelo socialismo. Tombou há 50 anos numa emboscada no dia 4 de novembro de 1969, em plena ditadura, um ano após a decretação do AI-5, em dezembro de 1968, que institucionalizou a tortura e a morte dos opositores do regime.

Meio século depois, o deputado Eduardo, filho do capitão-presidente Bolsonaro, ameaça o país com extrema desfaçatez e certeza de impunidade com a volta deste instrumento ditatorial. O mesmo AI-5 que implantou o terror e o arbítrio, decretou o fim do habeas corpus, o fechamento do Congresso, a cassação de mandatos parlamentares e de ministros do Supremo. Sob seu manto tingido de sangue, lideres políticos foram presos, assassinados e banidos para o exílio. Os bolsonaros querem a volta do terror e da censura para esconder seus crimes.

Os 50 anos da morte de Marighella estão sendo celebrados em debates e nas ruas. Seu nome tornou-se uma espécie de lenda na esquerda, seu rosto um ícone celebrado em camisetas e bandeiras. As circunstâncias de sua execução jamais foram apuradas. Havia licença para matar os combatentes que enfrentaram o regime. Seus rostos e nomes esta-vam espalhados em cartazes nas rodoviárias e aeroportos país afora, imitação grotesca dos filmes de faroeste americanos, em que os xerifes pregavam nos postes cartazes com os bandidos procurados.

Levado a uma emboscada na Alameda Casa Branca, em São Paulo, para encontrar dois frades dominicanos, Marighella foi cercado por um grupo de agentes da repressão comandados pelo delegado Sérgio Fleury, do esquadrão da morte/Deops, que o executou dentro de um fusca azul. Chegou caminhando sozinho, com uma peruca mal ajeitada na cabeça e uma pasta preta com material de higiene pessoal e um revólver Taurus, cali-bre 32. Nesta mesma noite, a ditadura comemorou o assassinato interrompendo trans-missões de rádios e TVs para anunciar a morte do “inimigo número um do regime”.

Justamente ele, Carlos Marighella, um mulato baiano da Baixa do Sapateiro, filho de imigrante italiano que se tornou operário e mãe negra ex-empregada doméstica. Um homem carismático, de porte elegante e convicções fortes. Nos documentos de identidade e passaportes que usava aparecia sempre de terno bem cortado e gravata, bigode aparado, óculos e um olhar desafiador. Poeta, quase engenheiro, professor e revolucionário, autor de um “Manual do guerrilheiro urbano”, livrinho que se esgotou rapidamente na época.

Eleito deputado federal pelo PCB junto com Jorge Amado, seu amigo, em 1946, teve o mandato cassado e logo partiu para a clandestinidade. Adaptou-se a essa vida solitária e errante. Casou, teve um filho, depois viria a se casar de novo com Clara Charf, militante comunista e feminista, com quem viveu até o final. Formado nas malhas do Partidão, enfrentou divergências e lutas internas até ser expulso em 1967, depois de romper com sua linha pacifista. Passou dois anos na China de Mao aprendendo os caminhos da revolução no campo e foi a Havana, ainda em 67, para participar da Conferência da OLAS, Organização Latino-Americana de Solidariedade.

Voltou decidido, disposto a não perder tempo. Juntou seus dissidentes e criou a ALN à sua feição Uma organização para a guerrilha, em que não havia comando centra-lizado e hierarquia, como nos partidos marxistas-leninistas tradicionais, e na qual os grupos táticos armados tinham inteira liberdade de ação. Participou de inúmeras ações ar-madas, O sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, a expropriação de bancos, trem e carros pagadores, lojas de armas e munições e tomadas de estações de rádio para denúncias contra a ditadura e propaganda política.

Ainda que tenha perdido batalhas, errado o caminho e não alcançado o poder, Marighella emerge deste acerto de contas com a História, nos cinquenta anos de sua morte, com a aura e a postura de um bravo lutador social. Seu perfil mostra que ele foi mais do que um disciplinado quadro do Partido. Tinha alma de poeta e a dimensão mítica de um revolucionário, uma rara e extinta espécie que floresceu entre as guerras e morreu nos anos 70 do século passado. Há dezenas de biografias e filmes a seu respeito, o ultimo deles, de Wagner Mouro e seu Jorge no papel do guerrilheiro, encontra-se retido nas malhas da censura.

A seu lado, da mesma geração e da mesma cepa, desponta a fidalga figura de Apolônio de Carvalho, outro revolucionário comunista que rompeu com o partidão para criar o PCBR, ao lado do jornalista Mário Alves, desaparecido político. Apolônio deu volta ao mundo. Combatente das brigadas internacionais na Guerra Civil Espanhola e herói da Resistência francesa durante a Segunda Guerra, sobreviveu a prisões e torturas e faleceu em 2005, com 93 anos.

Nos dois últimos anos da guerrilha urbana, com a tensa rotina diária de ações, quedas, tortura e mortes de combatentes, a Marighella e seu pequeno exército Brancaleone não restou outra escolha senão continuar a luta. Ainda que o derradeiro ponto levas-se ao encontro da morte. Está em Hannah Arendt que a esperança provém da permanente capacidade que têm os homens de começar algo novo.

*Jornalista e escritor