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Rebelião chilena muda o país

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Na noite do sexto dia de ininterruptos protestos populares que incendiaram o país, o presidente Sebastián Piñera finalmente entendeu que o Chile estava diante de uma explosão social sem precedentes - e se rendeu. Da mesma forma que o capitão Bolsonaro, o bilionário chileno não enxerga a questão social e a pobreza, e achou que poderia resolver a crise com a velha e brutal fórmula repressiva das elites sul-americanas: estado de emergência, toque de recolher e tropas do Exército nas ruas. A um passo de consumar um novo golpe.

Era tarde. Seu governo a esta altura já perdera o controle da situação, que passou ao comando dos manifestantes organizados numa ampla frente de lutas e mudanças políticas e sociais. No momento em que o presidente declarava sua rendição, os protestos já haviam enterrado a agenda liberal de reformas pró-mercado, com a imposição de uma proposta urgente de reformas sociais nas áreas de saúde e educação, com aumento das pensões e do salário mínimo, redução dos preços da eletricidade e dos remédios. Abrindo um debate com a oposição para a discussão de um amplo acordo nacional que inclua uma nova Constituição.

A repressão não intimidou os manifestantes. Os protestos ainda continuam e o toque de recolher foi ampliado. O balanço oficial indica até agora 18 mortos, número muito maior segundo as organizações, e dezenas de feridos e presos. Centenas de milhares de chilenos foram às ruas em Santiago cantando e levantando bandeiras em passeatas, criando um clima de convulsão social que se alastrou pelo país, como não se via desde o desmantelamento da ditadura de Pinochet, no fim dos anos 80.

Os protestos expuseram o profundo sentimento de revolta com o modelo desigual que exclui a grande maioria da população dos benefícios do desenvolvimento econômico das últimas décadas. Ao contrário do que propalaram, o Chile não era um oásis de desenvolvimento e paz social, um modelo de reformas liberais na América |Latina. Crises semelhantes sacudiram recentemente o Peru e o Equador. Em profunda recessão, com uma inflação de 55% ao ano, a Argentina se prepara para votar neste próximo domingo para encerrar o sombrio governo do liberal Mauricio Macri , devolvendo o poder ao peronistas.

Tratam-se de péssimas notícias para o ultradireitista Bolsonaro, que vê seus principais aliados no continente afundando em sérias turbulências. O Chile de Piñera entrou literalmente em guerra com o povo, conforme declarou o presidente ao dizer que estava em “guerra contra um inimigo poderoso, disposto a usar a violência sem nenhum limite”. Foi contestado pela sociedade e por seu próprio Pinochet, o comandante da defesa, general Javier Iturriaga.

A extrema violência contra os opositores partiu das forças do Exército e dos carabineiros. Santiago e outras cidades foram tomadas por ondas de saques e incêndios, estações do metrô foram destruídas. Ações claramente incentivadas por grupos radicais que atuam fora do movimento sindical e estudantil, usando como pretexto a alta de 3% na tarifa do metrô, que o governo foi obrigado a suspender.

Analistas reconhecem que algo profundo está ocorrendo no Chile. Suas raízes estão na extrema desigualdade e no aumento da pobreza e da exclusão social. O governo foi atropelado pelo acúmulo destas demandas que vêm crescendo anualmente nos setores de saúde, previdência, educação e trabalho. É um crescimento invisível para aqueles que se beneficiam de uma concentração de renda que atingiu níveis assustadores.

Do ponto de vista da esquerda latino-americana, o movimento revelou um sentimento de unidade e de organização como jamais se viu entre os partidos da esquerda brasileira ou argentina. O Uruguai tem a experiência positiva da Frente Ampla. Num comunicado ao público, os líderes das organizações que integram o movimento dialogam de forma direta com a população.

Relatam as graves consequências da maior crise política e social desde a ditadura militar, denunciam práticas antidemocráticas do governo e a tentativa de um auto-Golpe com a intensificação da repressão. Faz uma condenação aos atos de vandalismo e de delinquência de grupos minoritários e identifica a elite “arrogante e insensível” como responsável pela violência.

Em plena luta, forjou-se uma frente que já mudou o cenário político do Chile. Tornou-se visível fora e dentro do país, especialmente para sua poderosa classe dominante. Em seu comando estão dirigentes de organizações sindicais, a Central Unitária de Trabalhadores, representantes de partidos e movimentos sociais. Convocaram o governo para negociar a partir da pauta de reformas sociais definida pelas manifestações, afastado antes o estado de exceção.

*Jornalista e escritor