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Racismo barra os negros no futebol

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O velho e aclamado estádio do Maracanã, onde já se disputou uma trágica final de Copa do Mundo e Pelé fez o milésimo gol, foi palco na noite do último sábado (12/10) de um encontro inusitado, que se transformou num fato midiático de grandes proporções. Lá estavam, à beira do gramado como dizem os locutores de rádio, dois homens negros que se cumprimentaram orgulhosamente. Como treinadores de dois times da série A do campeonato brasileiro, eles protagonizaram uma cena histórica, reveladora da extensão do preconceito e da discriminação racial no mundo do futebol. Num esporte majoritariamente disputado por negros e mulatos, suas grandes estrelas, eles são os únicos treinadores negros na primeira divisão.

Não estamos em Viena nem em Budapeste, mas num país que cultua o futebol e em que mais de 50% da população é negra. Roger Machado, 44, do Bahia, e Marcão, 47, do Fluminense são os heróis que furaram as barreiras do preconceito e conseguiram chegar lá, depois de muito sofrimento e rejeição. Brilharam nos campos como jogadores, mas a função de técnico é reservada aos brancos, estrangeiros muitos. O máximo que conseguem alcançar é o posto de auxiliar-técnico, quando podem ser chamados para substituir o titular em momentos críticos. Depois, voltam para o banco.

Na noite que escancarou o preconceito, Marcão e Roger se abraçaram antes do jogo vestindo uma camiseta com os dizeres Chega de Preconceito, numa ação promovida pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol, que monitora casos de ofensas raciais no ambiente esportivo. Para Roger, que já passou pelo Grêmio, Palmeiras e Atlético Mineiro, a escassez de técnicos negros no futebol reflete o racismo estrutural da sociedade brasileira. “A estrutura social sempre foi racista”, disse sem subterfúgios.

Ele sabe que no futebol o preconceito é camuflado, diferentemente do que acontece em outras áreas da sociedade, o que torna os negros um pouco mais brancos e faz com que sejam mais bem aceitos nos clubes. Desde que se ponham no seu lugar. Poucos profissionais denunciam esta barreira da discriminação com a coragem e a contundência do atual técnico do Bahia, que estudou, fez faculdade (único negro da turma) e se preparou. Pelé, o maior de todos, nunca assumiu sua negritude nem uma postura combativa contra o preconceito.

Da mesma forma em que não há técnicos, não há cartolas ou dirigentes negros. Par-te considerável dos cartolas em atividade nos clubes é formada por pessoas folclóricas e muitos já responderam e respondem a acusações de corrupção, nos clubes, nas federações e na CBF. Tetracampeão mundial, o ex-volante Mauro Silva, que começou nas categorias de base do Guarani, tornou-se uma exceção. É o único dirigente negro nas fede-rações nacionais, ocupando a vice-presidência da Federação Paulista de Futebol. Conforme revelou o jornal El País, Mauro fez faculdade de informática com especialização em gestão financeira.

Se a questão é o negro no futebol precisamos falar do papel do Vasco e do jorna-lista Mário Filho, nome oficial dado ao Estádio do Maracanã. Em 1924, o Clube de Re-gatas Vasco da Gama recusou-se a disputar a divisão principal do Rio sem seus jogadores negros, maioria num time de operários, conforme exigência imposta pelos dirigentes dos demais clubes, numa época em que o futebol era privilégio da elite branca. Os “ca-misas negras” do Vasco, segundo os cartolas rivais, “não apresentavam condições sociais apropriadas para o convívio esportivo”.

Racismo descarado. Despejado, o clube criou outra Liga, foi campeão e devido a seu sucesso chamado a juntar-se aos demais na associação de onde fora expulso. Voltou com o seu time de negros. Luta histórica que consagrou o Vasco como o clube que abriu as portas do futebol para a turma que teria Leônidas, Garrincha e Pelé entre seus ídolos. Vitória que não se consolidou porque a sociedade continua racista. Tema que levou o jornalista e escritor Mário Rodrigues Filho, que dispensa a referência ao irmão mais famoso, Nelson, para ser apresentado, a escrever um livro pioneiro sobre a questão.

Lançado em 1947 pela editora Pongetti, O Negro no futebol brasileiro tornou-se uma obra de referência clássica, embora hoje esquecida. Repórter e cronista, Mário Filho trabalhou no Jornal dos Sports e no O Globo. Pernambucano, foi amigo de Zé Lins do Rego e discípulo de Gilberto Freyre, de quem adaptou para o futebol sua tese da democratização racial. Sua obra não busca fundamentar denúncias contra o racismo, mas sim mostrar o futebol como o meio pelo qual negros e mulatos podem ascender socialmente. Mário escreveu um romance sociológico, não uma pesquisa historiográfica.

Este tom conciliador mudou com os acréscimos feitos na nova edição da Civilização Brasileira, em 1964, pouco depois do golpe militar. Em vez da harmonia social, a Civilização, uma editora de livros de esquerda, quis realçar o caráter de luta contido na trajetória dos negros para conquistarem seu espaço no esporte. O momento é ideal para o técnico Roger Machado e seu amigos engajados reconstituírem a violência desta história num livro que contribua para mudar a estrutura que mantém a sociedade racista.

*Jornalista e escritor