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Três mulheres em tempos sombrios

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Fernanda, Greta e Ágatha ocuparam as manchetes e os palcos nacionais e inter-nacionais durante a semana que está findando. Não se trata de mais um festival roqueiro com a apresentação de uma banda famosa. Nem podia, tal a diversidade das personagens. A atriz Fernanda Montenegro, quase uma unanimidade nacional, comemora seus 90 anos com um livro de memórias, que ao mesmo tempo é revelador do cenário cultural do país. A garota sueca Greta Thunberg, uma ativista de 16 anos, encarou com uma ex-pressão de desafio magnatas e governantes na cúpula do Clima, em Nova York, dizendo-lhes que estão fazendo tudo errado. E a caçula delas, Ágatha Vitória Félix, pelo no-me uma princesa negra de apenas oito anos. Executada de forma traiçoeira, não teve tempo de dizer nada. Saiu de cena chorando, levando seus sonhos.

São três mulheres de nosso tempo, que cobre quase um século entre a chegada da primeira e a partida da última, que simbolizam a marcante presença feminina no planeta, ameaçado por neofascismos e mudanças climáticas. Três mulheres que ganharam visibilidade pelo talento, o trabalho e os sonhos. Com sua majestade nos palcos, Fernandona só encontra paralelo na vida artística nacional em Bibi Ferreira, outra atriz fenomenal, uma mulher pequenininha e de enorme expressividade, que imitava Sinatra e Piaff como se fosse cada um deles.

Quando já se pensava que Fernanda seria uma unanimidade, atributo abominável para um de seus autores preferidos, o dramaturgo Nelson Rodrigues, apareceu um burocrata, diretor da Funarte, ensandecido em busca de notoriedade e atacou-a com adjetivos grotescos, chamando-a de “sórdida” e “mentirosa”. Assim de graça, sem nenhuma justificativa. Apenas por que ela faz parte da classe artística, contra a qual ele diz travar uma “guerra irrevogável”. Um cruzado das hostes olavistas, cujo nome não vem ao caso aqui citar, dada a sua irrelevância.

Mas o que ficou claro para todos, bons e maus entendedores, é que ele falou em nome do preconceito e da mediocridade deste governo Bolsonaro, como um de seus áulicos e representantes. O que chocou o agressor foi uma entrevista de Fernanda à re-vista de literatura Quatro Cinco Um, chamada de “esquerdista” pelo idiota da objetividade. Na revista de outubro, já disponível nas redes, a velha e digna dama do teatro aparece numa foto amarrada como se fosse uma bruxa condenada pela Inquisição, com livros amontoados em sua frente, prontos para serem queimados, numa alegoria dos tempos do obscurantismo e apologia da censura. Dada a força dramática de Fernandona, o obscuro olavista certamente achou que a imagem fosse real.

Com sua paixão pela interpretação, Fernanda Montenegro deu vida nos palcos a personagens de Nelson Rodrigues em A Falecida e Beijo no Asfalto. Fez uma antológica Fedra, que ela chamou de um “mito da insurreição feminina”, tragédia de Racine traduzida por Millôr Fernandes e dirigida por Augusto Boal. Com direção de Gerald Thomas, fez The Flash and Crash Days, ao lado de sua filha Fernanda Torres. No papel de uma estilista que reprime seus sentimentos e sua sexualidade, fez As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, de Rainer Werner Fassbinder, um dos maiores triunfos de sua carreira.

E ainda andou de mãos dadas com Simone de Beauvoir, recitando nos palcos pensamentos e frases da autora de O Segundo Sexo, publicado em 1949 e que ainda continuam de pé. Mas não podemos esquecer que vivemos tempos sombrios. Na madrugada de uma sexta feira, 20/09, quando voltava da escola com a mãe, dentro de uma Kombi, uma menina de oito anos foi atingida nas costas por um tiro de fuzil disparado por um PM. Num lugar chamado complexo do Alemão, Zona Norte do Rio de Janeiro, cenário rotineiro de chacinas contra a população negra.

A escravidão no Brasil radicaliza, como mostra o escritor e jornalista Laurentino Gomes que acaba de lançar o volume 1 de sua trilogia Escravidão. Segundo ele, o resultado deste estudo pode ser visto em todos os cenários da vida brasileira. Há um desnível imenso. E isto vale para qualquer item: renda, moradia, educação, segurança. Olhe para as periferias, para as favelas, os presídios. Os negros estão sempre nas piores condições. O que é um absurdo, vista sua importância central na cultura, na política e na economia nacionais. A escravidão e o preconceito permanecem no DNA da sociedade brasileira, diz Laurentino.

Ágatha Félix seria apenas mais uma criança negra assassinada. Desta vez as circunstâncias e os protestos de familiares e moradores tornaram seu corpo um cadáver ilustre, que não mais podia ser escondido. Como fez o cineasta italiano Francesco Rosi em Cadáveres ilustres, reconstituição do assassinato de três juízes pela máfia. No complexo do Alemão, o crime teve testemunhas que desconstroem a farsa da troca de tiros entre poli-cias militares e bandidos. A população sabe quem é o responsável e gritou seu nome no enterro. Nas faixas, estava escrito Wilson Witzel, governador assassino.

Dificilmente a sueca Greta Thunberg, 16 anos, terá o mesmo destino. Ele mora em outro Complexo. Descoberta cedo, tornou-se um fenômeno midiático mundial. Sua voz e sua carinha de moça zangada são vistos nas redes centenas de milhares de vezes todos os dias. Deu início ao movimento Global Greve pelo Futuro, inspirando milhões de jovens em todo planeta. Já recebeu um Nobel alternativo. Aos senhores responsáveis pelo aumento da emissão de gases de efeito estufa, ela apontou o dedinho e disse: “A mu-dança virá, quer vocês queiram ou não”. É o que vamos pagar para ver.

*Jornalista e escritor

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