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A criação de robôs evangélicos

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É o fim dos tempos, diria o Dragão da Maldade, o matador de cangaceiros, com sua capacidade de antecipar o futuro. Um dos primeiros a perceber a aproximação do apocalipse, ele antevê a chegada de dois desastres simultâneos com alto poder de destruição, capazes de fazer a terra tremer e o sertão virar mar. O primeiro está ligado à queima de florestas e ao aquecimento global, é a mudança climática. E o outro vem associado à adoção de um livro que exercerá controle sobre a vida de todos os cidadãos. É a ameaça evangélica, com a era do pensamento único e das verdades da bíblia.

Juntas, a mudança climática e o fundamentalismo evangélico terão grande poder real de destruição sobre o mundo em que vivemos. São duas catástrofes que se interligam, sem que as pessoas tenham se dado conta da gravidade dos fenômenos. Em seu livro “A terra inabitável: Uma história do futuro”, o jornalista americano David Wallace-Wells descreve de forma aterradora os efeitos das mudanças climáticas decorrentes do aquecimento global. Ele usou uma linguagem de terror para advertir as pessoas de que elas não estarão imunes à crise climática que se processa em alta velocidade. Só o medo poderá mobilizar uma população que se comporta de forma complacente.

Do outro lado, o cineasta Gabriel Mascaro, diretor do belíssimo “Boi Neon”, traz desconforto aos espectadores com o seu novo longa “Divino Amor”, que se passa em 2027, misturando realidade e ficção futurística com toques tecnológicos. O filme mostra o Brasil transformado numa república evangélica daqui a 8 anos. No centro do drama, um casal evangélico exemplar, cujo trabalho para o governo se confunde com a dedicação direta a Deus. Num ambiente de pesadelo, o carnaval é substituído por festas de música gospel, aparelhos sofisticados detectam na entrada dos edifícios se uma pessoa é casada ou solteira, se a mulher está grávida.

Na vida real, na antevéspera desta utopia negativa de um Brasil evangélico, um homem chamado de mito por seus adeptos monta em seu governo uma engrenagem civil-militar-religiosa-ambiental para controlar a sociedade e submeter as instituições à sua crença religiosa. Junto aos pastores das igrejas, fazem celebrações em que cantam, gritam e oram com gestos e saudações a Deus e à Bíblia. Põem em risco o livre-pensar, a autodeterminação e a liberdade individual, num arremedo de sociedade vigiada em que toda a cultura será substituída por um livro único.

Em culto na Câmara Federal, o presidente recebeu a benção do bispo licenciado da Universal, Marcos Pereira. Um dos pastores disse: “Aqui entre nós está o escolhido.” As cenas se sucedem. No plenário, ele participou de uma sessão em homenagem aos 42 anos da Igreja Universal do Reino de Deus. O Estado é laico, mas o escolhido ignora. Disse aos irmãos que chegou a hora de pôr um ministro evangélico no Supremo, e proclamou que indicará um ministro “terrivelmente evangélico, pois Deus sabe das coisas.”

De mãos dadas com Deus seguem rumo ao controle total do poder. Articulam uma chapa puro sangue para a eleição de 2022. Em café da manhã na Catedral do Planalto, a bancada evangélica discutiu a indicação de um vice evangélico para Bolsonaro, descartando o general Hamilton Mourão, atual ocupante. A dificuldade será obter consenso para um nome que contente a todas as correntes, que incluem a Assembleia de Deus, a Universal, a Batista e a Quadrangular. Cada uma exigindo o seu quinhão.

A esta altura, Antônio das Mortes ajeita o seu rifle papo amarelo e se prepara para o duelo com Corisco. Como num conto de terror, parece incrível que as pessoas não acordem para as transformações em andamento. Da mesma forma, os conselhos, as entidades e associações, os órgãos de imprensa e os tribunais superiores e inferiores parecem coniventes. Muitos até se divertem com as piadas e provocações diversionistas do escolhido, como a nomeação do filho para a embaixada brasileira em Washington. Sem nenhuma qualificação, a não ser fritar hambúrgueres, será o embaixador.

Para o sociólogo espanhol Manuel Castells, os brasileiros estão entrando numa espécie de ditadura sutil da era da informática. Com o desmantelamento da educação e o uso das redes sociais, o governo interfere no imaginário de grande parte da população, criando uma nova mentalidade que nega os direitos humanos básicos e o respeito às divergências. As pessoas passam a repetir esses conceitos como se fossem robôs. Castells insere o contexto brasileiro numa tendência mundial de manipulação populista e demagógica.

*Jornalista e escritor

Tags:

religião | ROUBO