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O homem que matou seu professor de lógica

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Em determinados momentos só a ficção consegue dar conta da realidade. Há ocasiões em que elas se misturam com bons resultados. Vamos por partes. Em agosto de 1961, com menos de sete meses de governo, um homem renunciou à presidência da República do Brasil. Um homem normalmente agitado, que falava o português de forma pedante, que usou a vassoura como símbolo de sua campanha eleitoral. Nos comícios era visto despenteado, camisa com o colarinho sujo, comendo sanduíche e bebendo um trago. Considerado maluco por muita gente. Não era de esquerda nem de direita, muito menos do centrão. Um professor cristão que se tornou um político conservador e anticomunista, e que adotou um programa de governo revolucionário em alguns aspectos, para surpresa e decepção da aliança política que o elegeu.

Governou solitariamente, emitindo ordens através de bilhetinhos manuscritos que enviava a seus ministros e assessores. No Palácio usava uma roupa de missionário britânico. Uma figura excêntrica, com uma trajetória política meteórica, difícil de ser explicada, se é que isto é possível. Só mesmo recorrendo à liberdade que a ficção concede, com a licença de um mestre da criação literária, o escritor Campos de Carvalho, com o seu texto de humor surrealista. Com um quarteto de livros, “Vaca de nariz sutil”, “A chuva imóvel” e o “O púcaro búlgaro”, todos na década de 60 do século passado, Campos de Carvalho deixou sua marca na literatura brasileira.

Na abertura de seu primeiro romance, “A lua vem da Ásia”, de 1956, ele escreveu: “Aos dezesseis anos matei meu professor de Lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa seria mais legítima? - logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris” Bastou esse parágrafo para o reconhecimento da critica e dos leitores. Com ele podemos presumir que o presidente renunciante também matou seu professor de lógica.

Dizem que o fantasma desse homem, Jânio da Silva Quadros, está assombrando o país. Sua carta renúncia começava assim: “Fui vencido pela reação e por isso deixo o governo. Nestes sete meses cumpri o meu dever. Tenho-o cumprido dia e noite, infatigavelmente (...) buscando o caminho da verdadeira libertação política e econômica da nação, o único que possibilitaria o progresso efetivo e a justiça social a que tem direito o seu generoso povo”. Com essa carta Jânio se retirou de cena, arquitetando talvez que com o estrondo de seu impacto pudesse voltar nos braços do povo com mais poderes.

Existe um temor de que tal gesto teatral de renúncia possa se repetir agora com o presidente em exercício Jair Bolsonaro, um capitão reformado que sequer teve um professor de lógica em sua formação. Se tivesse o mataria, pois desde sempre manifestou total incompatibilidade com o estudo e as universidades. Seu único professor assumido é um arrivista exilado que lhe ensina uma doutrina de ódio e preconceito, de origem claramente fascista, que ameaça estrangular a democracia brasileira.

Em cinco meses de fanatismo, Bolsonaro mergulhou o país numa incontornável crise política, social e econômica. Sonha em viver uma aventura golpista. Compartilhou nas redes um manifesto em que o Brasil é apontado como “ingovernável” com este Congresso, esse judiciário, essa imprensa, essas instituições, esses estudantes e professores que estão aí. Seus adeptos radicais convocaram uma marcha de protesto a Brasília para o próximo domingo, dia 26. Querem o confronto, deixando em suspense duas saídas: a renúncia, estopim para um golpe, ou a guerra incessante com as instituições.

São homens e situações distintas. Jânio era totalmente imprevisível. Em pouco mais de 15 anos foi vereador, deputado, prefeito e governador de São Paulo, com votações arrasadoras. Cortejado pela conservadora UDN, ganhou a eleição do marechal Teixera Lott, um militar legalista apoiado pela esquerda. Foi a primeira vez que entrei numa cabine eleitoral. Votei no homem que empunhava a vassourinha para varrer a corrupção, influenciado por sua figura e o udenismo de meus pais, que me levaram a seu comício de final de campanha, em Goiânia. Não foi uma boa estreia.

Ao mesmo tempo em que proibiu miudezas como o biquíni, rinhas de briga de galo e o lança perfume no carnaval, Jânio executou uma política externa independente, afastando-se da influência americana. Teve a ousadia de condecorar Che Guevara, ministro de Cuba recém-saída de uma revolução comunista, com a Grã-Cruz da Ordem do Cruzeiro do Sul. Em seguida veio a intempestiva renúncia sob forte pressão liderada pelo governador Carlos Lacerda, militares e imprensa, Roberto Marinho à frente.

Em agosto de 1961, seu vice João Goulart, do PTB, encontrava-se em visita à China de Mao Tse-Tung. Ministros militares vetaram sua posse, só realizada depois de uma mudança de regime para o parlamentarismo. É também em Pequim que se encontra no momento o vice Hamilton Mourão. Não há hipótese de veto militar à sua volta.

Ao contrário de Jânio, não há indicações de que a renúncia esteja nas cogitações de Bolsonaro. Ele e seus grupos querem manter o poder. Logo, o que se espera com a marcha é a continuidade da guerra. Com o futuro totalmente incerto e imprevisível.

*Jornalista e escritor

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