ENTRE REALIDADE E FICÇÃO
Do novo Museu do Ipiranga à destruição da memória da ditadura
Publicado em 22/09/2022 às 11:37
Alterado em 22/09/2022 às 11:37
Numa tarde gelada de sábado na Paulicéia, fui conhecer o novo Museu do Ipiranga-USP, que reabriu suas portas neste bicentenário da Independência. Um amplo projeto de restauro e modernização, a reforma do majestoso prédio histórico e os cuidados com a inclusão e uso de recursos multissensoriais e de acessibilidade universal, impressionam o visitante. A estes fatores juntou-se uma oportuna revisão historiográfica em profundidade, com a adoção de um viés crítico sobre o processo de Independência.
O Museu se apresenta de cara nova, menos elitizado, valorizando a presença dos indígenas, dos negros e das mulheres no passado brasileiro. Registros de imagens, coleções de mapas e conjuntos fotográficos contribuem para levar ao público uma renovação completa das narrativas sobre a Independência, já presente nos livros didáticos escolares, que seguiram orientação de historiadores e pesquisadores.
A emancipação deixa de ficar atrelada à imagem do gesto grandiloqüente do príncipe regente em seu cavalo branco, às margens do riacho Ipiranga, soltando o seu grito de independência. Imagem que durante décadas deu sustentação à versão oficial ensinada nas salas de aula. O imponente quatro de Pedro Américo continua lá, ocupando toda a parede do Salão Nobre.
O visitante conhecerá cenas e personagens do passado brasileiro, muitas delas feitas a partir de visões elitistas que desvalorizavam a participação das classes populares, indígenas e negros escravizados, na construção da história. Tudo isso num ambiente moderno, com recursos de audiodescrição e libras. Exposições equipadas com alfabeto braile para deficientes visuais, recursos para o toque, exploração sensorial e piso tátil.
Desde os tempos coloniais que a História oficial no Brasil sempre foi manipulada e censurada, contada segundo a versão das classes dominantes. Neste momento mesmo em que estamos, o Ministério Público pediu ao Tribunal de Contas da União que apure o descarte, pelo governo Bolsonaro, de 17 mil obras do acervo da memória da ditadura. As obras estão armazenadas na Comissão de Anistia. O caso foi revelado pelo blog do Ricardo Noblat.
Continua presente em nossa memória recente que a política de destruição de arquivos, as negativas da prática de tortura, os elogios a torturadores e a anulação de atos de anistia política começaram com a pastora evangélica Damares Alves, no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Vinculada ao ministério da Damares, a Comissão decidiu se desfazer desse valioso material, que contém CDs, DVDs e publicações diversas sobre temas que envolvem os anos da ditadura, iniciada em 1964.
São documentos como relatos de tortura, depoimentos de advogados que atuaram na defesa de perseguidos e de vítimas do regime militar, centenas de cópias do relatório final da Comissão Nacional da Verdade. Para o procurador do MP junto ao TCU, Lucas Furtado, o descarte dessas obras põe em risco informações substanciais sobre uma parte da história do país. O que constitui um crime contra o patrimônio público.
Deixei o renovado Museu do Ipiranga atravessando o Jardim Francês com suas fontes e chafarizes restauradas, com a alegre sensação de ter feito uma inesperada viagem pela Brasil colonial. E de ter sido surpreendido pela exposição de um pensamento crítico sobre a história da Independência, num momento em que o país submerge num grotesco processo de regressão sob o neofascismno de Bolsonaro.
Depois de ficar nove anos fechado, o Ipiranga reabre com 12 novas exposições, que reúnem cerca de 3,7 mil peças, sendo 353 delas multissensoriais, integrantes do novo projeto curatorial que definiu um perfil menos elitizado para a instituição. No total são 3.700 itens, a maioria inédita, sendo que 353 deles receberam tratamento multissensorial, facilitando as interações táteis e olfativas – há salas com cheiros - além de material em braile.
É urgente ligar e proteger os pontos cardeais de nossa historia, antes que a ideologia do bolsonarismo consiga seu intento de destruir a memória da ditadura. A Coalizão Brasil pela Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia, que reúne grupos e entidades da sociedade civil, trouxe o tema para discussão nas eleições. A vitória de Lula é essencial para que essa mobilização aconteça, colocando um fim na ação de vândalos que agem acima da democracia, guiados pelo propósito de transformar o país num lugar nebuloso e sem memória.
*Jornalista e escritor