ENTRE REALIDADE E FICÇÃO
No embalo de Caetano, Gil e Milton, com o beijo do Gordo
Publicado em 11/08/2022 às 10:25
Alterado em 11/08/2022 às 10:25
A comemoração dos oitenta anos de Caetano Veloso, somados aos 80 de Gilberto Gil e mais oitenta de Milton Nascimento, dá-se no momento em que o país chora a perda de outro artista de gênio, o comediante Jô Soares, que chegou aos 84. A celebração da vida e dos feitos desses quatro mosqueteiros e notáveis criadores, ilumina o cenário histórico da cultura brasileira com o brilhantismo atemporal de suas trajetórias.
São macacos de uma mesma árvore, que brincam de um galho para outro de mãos dadas, defensores da liberdade de agir e de pensar. Ao mesmo tempo, a iluminação de seus vultos põe em realce o contraste com a atormentada realidade do Brasil atual, assolada por um vendaval medíocre e autoritário, de cunho racista e preconceituoso, que invade o campo da cultura e quer atingir as instituições com um projeto ditatorial de poder.
Lúcidos e fagueiros aos oitenta, com os caracóis dos cabelos embranquecidos, Gil, Caetano e Milton continuam presentes e videntes, fazendo excursões e shows país afora, juntando filhos e netos, carregando seus encantos, desvendando e decifrando o Brasil com suas ideias e canções. Sempre que viajam estão em busca de mais liberdade, fazendo uso de uma linguagem transgressora e irreverente. A despeito dos desencantos, das ditaduras que enfrentaram pelo caminho, das vezes em que apanharam da polícia e dos censores.
Integram uma geração que construiu uma época de outro da música brasileira, que deu voz a quem não tinha. São dotados, cada um a seu modo, de um poder de atração e de irradiação, trunfos valiosos neste momento de nuvens sombrias e persianas fechadas. Para defender a liberdade de expressão e de criação, chegou a hora de colocar a sociedade civil novamente no centro da política, em defesa da democracia ameaçada por negacionistas e oportunistas dos quartéis, dos mercados, das igrejas, etc e tal.
Em primeiro plano está a Carta às Brasileiras e Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito, que será lida e apresentada publicamente nesta quinta feira, 11 de agosto, na Faculdade de Direito de S Paulo. E em manifestações por todo o país, numa dimensão não alcançada desde o fim da ditadura. Aqui mesmo, na última quinta-feira, escrevi sobre a provocação golpista de realizar a parada militar de 7 de setembro na orla de Copacabana. Diante das reações, o capitão foi obrigado a recuar.
Esta foi uma semana que teve de tudo. Em meio às lágrimas e aos louvores dos talentos de Jô Soares na televisão e fora dela, vieram à tona nas redes imagens de sua irreverência, sua veia culta, suas piadas, seus bordões e personagens. Todo mundo que lá esteve sentado naquela poltrona ao lado do gordo, tratou de difundir suas imagens. Tostão, o craque da crônica esportiva, escreveu em sua coluna na Folha que quando quer mostrar-se uma pessoa importante, costuma dizer que jogou com Pelé e foi entrevistado pelo Jô.
Seu personagem preferido era o Zé da Galera, aquele que telefonava do orelhão para o técnico da seleção, Telê Santana, e pedia: “Bota um ponta, Telê.!” Como Tostão, as pessoas se sentiam valorizadas depois de passar pela entrevista com o Jô. Artistas e escritores vendiam mais livros e Cds, tinham filas nos teatros em que se apresentavam.
Em momentos cruciais de suas vidas, os três octogenários dos palcos e da canção sempre mantiveram a cabeça erguida. Gil mandou “Aquele abraço” saindo para o exílio com Caetano, depois de presos na ditadura. O Rio de Janeiro continua lindo, o Rio de Janeiro continua sendo, o Rio de Janeiro, fevereiro e março. Alô, alô, Realengo, alô torcida do Flamengo, aquele abraço! Alô, alô, seu Chacrinha, velho guerreiro, aquele abraço! Meu caminho pelo mundo, eu mesmo traço. A Bahia já me deu régua e compasso, quem sabe de mim sou eu, Aquele abraço!
O tropicalista Caetano fez a letra de Terra ao ver imagens do planeta numa cela do Doicodi. Quando eu me encontrava preso, na cela de uma cadeia, foi que eu vi pela primeira vez, as tais fotografias, em que apareces inteira, porém lá não estavas nua, e sim coberta de nuvens. Terra, terra, por mais distante, o errante navegante, quem jamais te esqueceria?
Milton Nascimento se imaginou na plataforma de uma Estação de trem para fazer Encontros e Despedidas, em parceria com Fernando Brant: Mande noticias do mundo de lá, diz quem fica, me dê um abraço. Venha me apertar, tô chegando. Coisa que gosto é poder partir, sem ter planos. Melhor ainda é poder voltar, quando quero
Os três viajam, os três compõem, os três abraçam seus violões. São vozes que precisamos ouvir neste momento de destruição do planeta, de pandemias, desemprego e fome. Para pôr em diálogo com obras de outros autores de igual vitalidade, para respirar e reagir à opressão e ao sufocamento de nossas liberdades.
*Jornalista e escritor