Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

Duas mortes me levam a uma viagem pela Une da praia do Flamengo

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Publicado em 02/06/2022 às 12:45

Alterado em 02/06/2022 às 12:46

Álvaro Caldas JB

Nos últimos dias de maio despediram-se dois companheiros de geração. Primeiro o Kinjô, jornalista, logo depois o Pedro, fotógrafo. Saíram de cena discretamente, com breves notas nos jornais recapitulando detalhes de suas vidas e atividades. Seus embates contra a ditadura, prisão, exílio, tudo mais que foi comum a esta geração. O registro de suas mortes ativou a memória afetiva daqueles tempos de formação e rebeldia. De marchas e contra marchas de uma revolução que seria feita por poetas e guerrilheiros.

Meu encontro com os dois foi marcado pela intensidade dos acontecimentos que precederam o golpe militar de 1964. E trazem o cenário inesquecível do local onde nos conhecemos e trabalhamos, o prédio de dois andares na praia do Flamengo 132, sede da UNE, no Rio.

O paulista Humberto Kinjô, o japonês da AP, era o homem do José Serra (então presidente da UNE) no jornal Movimento, cujo lançamento nacional estava sendo preparado. O carioca Pedro de Moraes, fotógrafo autodidata, filho do poeta Vinicius de Moraes, integrante da equipe. Completava o time, na condição de repórter, este estudante de jornalismo na Faculdade Nacional de Filosofia. Levado para lá pelas mãos do timoneiro Walter Faria, também da faculdade, representante do PCB na condução do projeto.

Movimento foi projetado para ser um tablóide de 12 páginas, de circulação nacional. Logo na primeira pauta, saí com o Pedro para uma reportagem sobre as rebeliões militares em curso. Ele fez uma bela foto dos soldados perfilados para o combate no Monumento aos Pracinhas, no Aterro do Flamengo. Foi capa da edição. Nossa segunda parceria seria uma viagem a Santos, para entrevistar o dirigente portuário que se projetara na liderança de uma greve.

Vivi momentos de empolgação com minha primeira viagem como repórter. Mas acabei viajando sozinho. Pedro teve que cancelar sua ida. Uma semana depois passei uma tarde no Hotel Plaza, em Copacabana, com o sargento que liderou a revolta de um grupo de militares, em Brasília. Clandestino, ele proibiu a entrada do fotógrafo e deu a entrevista com uma pistola 45 em cima da mesa.

No andamento dos trabalhos do jornal, em meio à agitação que corria na UNE, fiquei amigo do Kinjô. Saíamos à noite para jantar e tomar chope no Lamas, restaurante e bar de sinuca, ponto de encontro da boemia ali pertinho, no Largo do Machado.

Ao recriar na imaginação o prédio da UNE na praia do Flamengo me espanto com a babel criativa que lá reinava. Um turbilhão ligado direto 24 horas. Intermináveis reuniões de grupos sindicais, artistas, professores e estudantes num país com febre de mudanças. Nesse tumulto nasceu o Centro Popular de Cultura (CPC) berço do cinema novo, e a Une Volante, pequenos grupos que saíam numa Kombi pelos subúrbios e até outros Estados, para fazer alfabetização de adultos e encenações teatrais.

Para o Pedro foi um momento especial, que abriu caminho para seus trabalhos posteriores na área de cinema. Trabalhou com Glauber Rocha e outros cineastas na direção de fotografia. A UNE transformara-se num barato que atraía os jovens. Numa noite você podia encontrar o líder camponês Francisco Julião falando sobre as ligas camponesas, ou sentar no auditório para assistir a O Auto da Compadecida, de Suassuna.

Politicamente, a entidade integrava uma frente nacionalista-reformista de apoio ao presidente Goulart, da qual fazia parte a Frente Parlamentar Nacionalista (FPN), com a participação de parlamentares do PTB e do PSB. Contavam com o apoio da Confederação Geral dos Trabalhadores e do Partido Comunista, então na ilegalidade

Nos dias pré-golpe a entidade difundiu notas convocando uma mobilização geral pela defesa da legalidade e das liberdades democráticas. Serra discursou no comício das reformas de base, na Central do Brasil, ao lado de Jango, A esperada resistência não aconteceu e na noite de 31 de março para 1 de abril de 1964 o golpe se instalou.

A UNE foi invadida, saqueada e queimada. Passando de ônibus em frente, vi as labaredas de ódio saindo de suas janelas. Lá dentro viraram cinzas parte dos sonhos de uma geração. E na gaveta de minha mesa de trabalho, a câmera Nikon usada, que havia adquirido por indicação do Pedro. Grupos de extrema direita e policiais do governo Lacerda participaram da ação.

Com o golpe, cada um tomou seu rumo. Pedro nunca mais vi, apesar de tê-lo procurado uma vez, quando soube que estava doente. Tive noticias através de minha neta Juliana, médica recém-formada que dá plantões no Hospital São José. Auto exilou-se, morou em Paris, fez cursos, bebeu, fez cinema e exposições de fotografias. Publicou O Mergulhador, livro que reúne fotos de sua autoria e poemas de Vinicius.

Os dois companheiros de geração estavam chegando aos oitenta, morreram com 79 anos. Humberto Kaoru Kinjô não teve vida fácil. Enfrentou duas ditaduras, a que nos coube e a chilena. Continuou militando após o golpe, trabalhou na Folha de S. Paulo durante um tempo até ser preso, em 1968. Solto, resolveu se mandar, conseguiu chegar ao Chile. Com a derrubada de Allende, refugiou-se com a namorada, a colombiana Marina, na lotada embaixada de Honduras.

Quase ficou famoso quando negociou com um segurança da embaixada a entrada de cinco perseguidos chilenos, barrados na porta, em troca de uma camisa do corintiano Rivelino, do qual o policial era fã. Casou-se com Marina e morou em Bogotá antes de voltar, em 1981. Durante anos andei atrás de contato com ele. Em 2018 descobri seu paradeiro através do Memorial da Resistência, ex-Dops. Liguei, marcamos um almoço e finalmente me vi frente a frente ao enigmático japonês da AP.

Uma tarde alegre, plena de recordações e lacunas na memória, no restaurante Rei do Filet, praça Júlio Mesquita, centro de São Paulo. Testemunhas: Alice, minha namorada, e a mulher Marina e o filho, da parte dele, que já não estava bem de saúde.

Em minha primeira prisão, em 70, perdi a preciosa coleção com os 4 números que saíram do jornal Movimento. A repressão doicodiana que invadiu meu apartamento levou tudo que pôde, incluindo livros, roupas e uma garrafa de Johnnie Walker. Um verdadeiro saque. num país sob ditadura.

*Jornalista e escritor

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