Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

Lula lidera pesquisas e mídia o trata como um outsider

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Publicado em 16/12/2021 às 19:06

Alterado em 16/12/2021 às 19:06

Álvaro Caldas JB

Luiz Inácio Lula da Silva esteve em Buenos Aires semana passada. Foi ovacionado numa grande manifestação na Praça de Maio, convocada para comemorar a volta da Argentina à democracia. O peronismo, rachado, fez festa para recebê-lo e ao ex- presidente uruguaio, José “Pepe” Mujica. Os dois velhos combatentes tornaram-se celebridades. Teve tratamento de um líder político de expressão mundial.

Antes, rodou pela Europa, foi recebido com honras de chefe de Estado pelo presidente francês, Emmanuel Macron. Faltou estender o giro ao Vaticano, para uma conversa reservada com o papa Francisco. Amigo meu, professor de Literatura, que se encontra em viagem sabática por Lisboa e arredores, acionou seu celular e me perguntou, numa mensagem rápida, se o Lula havia pirado. Ao invés de viajar pelo Brasil partiu para o exterior, fazendo campanha para o Parlamento europeu ou a presidência do Mercosul?

Pelo menos foi o que ele disse ter visto nos jornais portugueses e espanhóis, na primeira página do Clarín e do Le Monde. Estou espantado, disse, cheio de temores. Ele é a esperança que nos resta para sair dessa tenebrosa e humilhante escuridão. Mas Lula viajou mesmo? o leitor pode se perguntar. O que ele não sabe é que aqui os jornais esconderam a notícia, deram muito pouco, quase nada das andanças do candidato.

Meu amigo é doutor no ensino de literatura brasileira. Contista bissexto, faz pesquisas para um livro sobre o papel omisso e colaborador da imprensa durante a ditadura, um tema que o apaixona desde sempre. Por que a imprensa empresarial e financeiramente autônoma se acovardou, com poucas exceções? Quer escrever a saga dos jornalistas que, mesmo sob censura, teimaram em contar histórias verdadeiras, num contexto em que pretende deixar registrado para a História o Obituário dos jornais que apoiaram o golpe 1964.

Digo-lhe que neste país de seus amados Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, a imprensa vê o que ela quer e lhe interessa. Continua aquela mesma sobre a qual conversávamos na sala dos professores da PUC, tomando um cafezinho no intervalo entre as aulas. Os veículos apregoam zelar pela pluralidade, a imparcialidade e a liberdade de expressão. Ao contrário, editam para o seu público o jogo diário da interpretação, da manipulação, da omissão e da ênfase.

O que não interessa é jogado para os cantos, posto sob suspeita e deletado. É essa A regra do jogo, o leitor que se vire, como deixou registrado Cláudio Abramo, um profissional exemplar, em seu livro adotado nas faculdades de Comunicação nos tempos em que jornalismo era uma coisa e publicidade outra. Abramo foi aquele que disse que a ética do jornalista é a mesma do marceneiro, não tem porque ser diferente. Não se deve roubar nem mentir.

Lula viajou e definiu os parâmetros para uma nova politica externa? Que importa que tenha se reunido com o chefe de governo da Espanha, Pedro Sánchez e o novo chanceler da Alemanha, Olaf Scholz? Que tenha sido aplaudido de pé numa reunião com membros do Parlamento Europeu, já articulando, ao lado de Celso Amorim, uma politica externa independente, com o eixo focado nas relações multilaterais dos países do Continente.

Defendeu a criação de um Banco e de um Conselho de Defesa da América do Sul, deixando de fora os Estados Unidos. Enquanto isto, Bolsonaro foi humilhado e posto de lado em cúpulas mundiais às quais compareceu, e se reuniu com chefes de regimes autoritários no Oriente Médio.

A esta altura, Lula se firma como líder em todas as pesquisas para as eleições de 2022, na maioria já decide no primeiro turno, mas sua presença no noticiário não corresponde ao seu tamanho político. É escassa. Se comparado ao espaço ocupado pelo ex-juiz Moro, sem a toga e declarado suspeito e parcial pelo STF, é risível. Diante do fracasso de Bolsonaro, que míngua, Moro é o nome escolhido para desfilar na engarrafada avenida da terceira via.

A imagem criada para Lula é semelhante à de um outsider que não inspira confiança, um político despreparado que vai regulamentar os meios de comunicação, impor limites ao capitalismo desenfreado. Melhor mantê-lo distante, movendo-se nas nuvens como uma sombra, que já é grande. Convém não falar seu nome. Pode ser que o establisment não goste de seus modos, de sua barba, de sua oratória sedutora, de seu carisma, e não o aceite.

Ou talvez exija uma nova Carta aos Brasileiros para lhe dar posse, nesta democracia controlada em que vivemos. Na verdade, o destinatário da primeira carta após a vitória em 2006 não era o povo, mas o mercado financeiro, a Fiesp, as agências internacionais de risco, militares que acreditam no perigo comunista. O povo brasileiro não precisava de carta, já havia se manifestado plebiscitariamente nas urnas.

Os anos passaram. Fernando de Morais acaba de lançar o primeiro volume da biografia de Lula, da infância à anulação de suas condenações, em 2021. Ao longo do caminho, as histórias se entrecruzam e são contadas por quem acompanhou de perto o personagem. Em suas jornadas por tantas cidades e vilas não se queixava de desconforto e sempre foi muito ativo. Gosta de gente, possui uma maneira desprendida e espontânea de estender a mão para cumprimentar, aproximando também o rosto para um beijo na face.

Nunca soube ao certo os limites entre os sonhos, a vigília e a realidade. Se bebia à noite, no dia seguinte estava pronto para uma reunião no sindicato. Sensibilidade e intuição à flor da pele, vê adiante coisas que os amigos não percebem. Sente o desconforto e sabe quando erra, como também é mestre em oferecer palavras de consolo. Há momentos em que conserva a graça de um adolescente. Domina com naturalidade a arte de contar histórias, é expansivo e afetuoso. Na solidão da cadeia leu muito.
São imagens do outsider Lula que captei numa apressada leitura do apaixonado trabalho do jornalista Fernando de Morais.

*Jornalista e escritor

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