Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

Há novidades no velho reino dos livros e das livrarias

Publicado em 06/05/2021 às 18:42

Alterado em 06/05/2021 às 18:45

Álvaro Caldas JB

Eu vivia cercado de livrarias. Havia livrarias e sebos por toda Cidade. Conheci Marques Rebelo (1907-1973) de O Espelho Partido, dentro de uma. O surrealista Campos de Carvalho (1916-1988), de A lua vem da Ásia, na porta de outra. Andando por aquele conjunto de ruas antigas cortadas pela avenida Rio Branco, da Beira Mar à presidente Vargas, passava pela calçada de várias delas. Na Ouvidor, Sete de Setembro, São José, Assembleia, do Rosário, Praça 15 e a México, Podia entrar, folhear, paquerar um volume e até sair sem pagar. Tempos de dureza na vida de estudante.

Da sacada do prédio do jornal onde trabalhava, na Rio Branco, 118, avistava algumas. Via de esguelha o sobrado da Civilização Brasileira, na esquina da Sete, a maior e mais importante na época, década de 1960. Entrei lá algumas vezes para panfletar. Esparramava panfletos entre e debaixo dos livros expostos na bancada e saía dissimulado sem olhar para trás. Fazia o mesmo na Zahar, na rua México. Especializada em Ciências Humanas e Sociais, em suas estantes tomei contato com a literatura marxista, e mais Freud, Lacan, Sartre e Reich. Lá me sentia mais em casa para deixar as conclamações subversivas trazidas da Faculdade, a Fnfi, ali pertinho.

Se quisesse, não precisava nem sair da redação do Jornal do Brasil para comprar livros. Um vendedor, amigo da Casa, aparecia no 3º andar toda semana com sua maleta cheia de volumes dos clássicos, impressos em papel bíblia, capa dura, obras completas de Tolstoi, Fernando Pessoa, entre tantos outros. Com a possibilidade de desfrutar ainda de outros prazeres que ele oferecia, uísque escocês legítimo importado e cigarros americanos.

Com suas portas democraticamente abertas, as livrarias muitas vezes serviram de refúgio para estudantes fugindo da PM nas passeatas e comícios relâmpagos. Ficavam lá dentro atrás dos livros até o gás lacrimogêneo baixar e os policiais se afastarem. As leiterias também eram um ótimo refúgio para tomar um café. Um pouco fora deste circuito estava e continua lá o Real Gabinete Português de Leitura, na rua Luís de Camões. Com sua imponência arquitetônica, considerado uma catedral da cultura, era um lugar apropriado para se fazer uma oração para o livro, não para se esconder.

Em plena pandemia, depois que as mais tradicionais livrarias de rua do Rio fecharam as portas, leio na Folha de S. Paulo que um grupo de oito livreiros decidiu se unir para sobreviver. Não será possível reencontrar Marques Rebelo nem Campos de Carvalho, mas sim seus livros relançados. Já era leitor de Campos quando o vi na entrada da José Olympio. Tietei e fiz reverências, mas ele, segurando uma pasta de couro como se fosse um burocrata, afastou-se com um sorriso tímido. Nada a ver com o mestre da literatura do absurdo, que provoca o leitor já na abertura de A Lua vem da Ásia: “Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando legítima defesa, logrei ser absolvido por 5 votos a 2.” Vaca de nariz sutil é outro de seus títulos mais lidos.

Os livreiros precisarão matar alguns professores de lógica e donos do mercado para revitalizar e valorizar esses espaços de cultura, convívio e de incentivo à leitura. Livraria sempre foi lugar de encontro, de conversa, de manusear e cheirar livros, atos que exigem presença física. A briga será grande, de cara terão que enfrentar a Amazon, a gigante americana que domina o mercado, oferece descontos maiores e usa as livrarias como uma vitrine para suas vendas. Os clientes visitam as lojas, passeiam pelas estantes e depois compram pela internet.

Líder na venda de livros no Brasil, a Amazon contribuiu para a quebra de outras grandes e tradicionais, como a Cultura e a Saraiva. Criar uma cadeia de estímulos para atração do leitor, juntar no mesmo espaço vários editores, fornecer diretamente para as bibliotecas comunitárias e reduzir custos de impostos, estão nos planos deste coletivo de livreiros que querem voltar às ruas, entre eles os experientes donos da Da Vinci e Argumento.

O livro tem seus amantes e o momento é favorável a esse encontro afetivo do leitor com os autores brasileiros, capazes de escavar a realidade e oferecer novas visões sobre essa hora trágica em que vivemos. As principais editoras estão colocando no mercado, desde o inicio do ano, uma rica e variada safra de obras como se estivessem dando um Viva o autor brasileiro! Minha fonte é a revista Quatro Cinco Um, a revista dos livros, que resenhou alguns destes lançamentos.

Marçal Aquino volta à literatura com o romance Baixo Esplendor (Cia. das Letras) em que mistura o erótico e o policial, temas de algumas de suas obras anteriores, alcançando um ponto alto de sua criação, segundo resenha assinada pelo escritor Julián Fuks. Consagrado como um dos melhores desta nova geração brasileira, premiado por A resistência e A ocupação, Fuks partiu para um ensaio sobre a arte do romance. Pela Companhia das Letras está lançando Romance, História de uma ideia, uma reflexão sobre esta arte secular, capaz de lançar desafios sobre os mistérios da existência humana.

Os leitores poderão desfrutar também de um novo livro de Bernardo Kucinski, A cicatriz e outras histórias, uma coletânea de quase todos os seus contos (Alameda Casa Editorial). Joca Reiners Terron entrega O riso dos ratos (Todavia), a descida ao inferno de um homem quer recebe o diagnóstico de uma doença fatal. A literatura de autores e personagens negros figura com Continuo preta: a vida de Suely Carneiro, (Cia das Letras), da jornalista Bianca Santana, sobre a filósofa, escritora e pioneira do ativismo negro. E a reedição de Quarto de despejo, diário de uma favelada, (Ática), de Carolina Maria de Jesus.

Poderá o romance sobreviver num mundo radicalmente oposto ao seu, contrário aos seus princípios básicos? Dependerá do leitor, da formação de novos leitores, de mais livrarias abertas, deste convívio. “Cada leitor é, quando lê, o leitor de si mesmo”. São palavras de Proust. outro mestre desta arte.