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Representação política ganha novas cores e gêneros

Chegou ao fim o tempo do bolsonarismo radical com suas ideias estapafúrdias, asquerosas, racistas e preconceituosas

JB -
Álvaro Caldas
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A eleição acabou, as urnas foram fechadas, as fichas caíram e as folhas mortas varridas do terreno. Dezenas de siglas, que dão nomes aos partidos que nada significam, mudaram de posição no tabuleiro. Feitas as contas, contabilizadas as prefeituras ganhas, algumas conclusões foram tiradas. Chegou ao fim o tempo do bolsonarismo radical com suas ideias estapafúrdias, asquerosas, racistas e preconceituosas. Derrotada, a esquerda viu acender um farol de luz potente numa praia ao Sudeste do país. A direita e a centro-direita, sem que o eleitor perceba nestes blocos alguma diferença de significado e conte-údo, foram consagradas vitoriosas.

Mas, além disto, como cantou o grande sambista Adoniran Barbosa com sua voz rouca, tem outras coisas. Passaram pelas ruas e praças municipais correntes de ventos reveladores de mudanças no exercício da atividade política. Ventos embalados por pessoas comuns, vindas das periferias e de outros cantos. Entre elas mulheres, negros, jovens, trans, gays, todas com um desejo forte de afirmação, de mostrar seu próprio rosto, assumindo suas identidades. Presentes na hora de votar, mesmo sob a ameaça de uma segunda onda da pandemia, que levou a uma abstenção recorde superior a 30%.

As eleições municipais deste ano viram despontar um fenômeno novo, que tende a se consolidar e no futuro, certamente, terá peso grande no pleito presidencial e de governadores em 2022. Emergiu das urnas um candidato-eleitor que se assume por parâmetros antes recalcados, como a cor da pele, a identidade de gênero, a origem social, e até mesmo a juventude. Estas características, submersas por repressão e medo seculares, afloraram em decorrência de longas lutas para reconhecimento político de seus grupos.

São pessoas que não se afirmam como de esquerda ou de direita, que colocam em segundo plano sua adesão a esses termos. Seus valores são os das categorias a que pertencem e manifestam a partir de agora cada vez com mais firmeza. Pretos e trans, que foram vozes que falaram mais alto, entre outros. Não se sentem representados nos mapas, tabelas e gráficos coloridos dos partidos. Ao mesmo tempo, mobilizaram-se por questões concretas, como emprego, saúde, educação, defesa de uma causa. Muitos criaram coragem e se candidataram. Outros votaram em seus defensores, não importa a sigla partidária que ostentem. Para chegar a eles, a velha e desarrumada esquerda precisa mudar de cara e falar esta linguagem. O caminho não é aliança com a centro-direita.

Em entrevista ao El PAÍS, o cientista político Fernando Abrucio, professor da Fundação Getúlio Vargas, fez uma análise do resultado das eleições municipais. Para ele, a esquerda perdeu a hegemonia na discussão de questões sociais, e este será o grande tema que definirá o próximo pleito presidencial, em 2022. O que significa o oposto do bolsonarismo. O eleitor deixou claro que a pauta dos costumes não está acima de questões concretas, como emprego, saúde e educação.

As eleições revelaram ao mesmo tempo o isolamento do PT e um enorme desgaste na imagem de Bolsonaro, inclusive entre os evangélicos “Seu erro foi privilegiar o fator ideológico ao invés de políticas públicas. Ninguém mais aguenta esse discurso ideológico em sua vida diária, uma overdose que cansou e saiu de cena.” Para Abrucio, a agenda social não foi exclusividade da esquerda. “Os candidatos de direita e centro-direita que abraçaram a pauta social saíram-se bem”.

Do mesmo modo que os novos candidatos que emergiram na cena politica não fazem questão de se situar à esquerda, embora estejam, também não se fecham numa definição ideológica. As pessoas não precisam de uma ideologia para viver, contrariando os versos do poeta rebelde Cazuza. “Meu partido é um coração partido/Meus sonhos foram todos vendidos/Meus heróis morreram de overdose/ Meus inimigos estão no poder/ Ideologia! Eu quero uma pra viver, Ideologia!”

Seu modo de agir representa uma inversão de posicionamento na prática política. Eles são de esquerda porque se incluem na sua tradição histórica de lutas contra as desigualdades e teses de transformações sociais, que se universalizaram. Com o devido respeito à democracia, que não figurava nas teses leninistas. O caráter da definição vai se dar pela cor e gênero. Os negros importam. Não precisam ser de esquerda, e muito menos querem saber de siglas. Qualquer uma dá no mesmo, basta ver a facilidade com que trocam de rumo e de galho no poder.

O resultado das urnas mostra um aumento da participação de mulheres, negros, e representantes da comunidade LGBT na representação politica, em sua luta contra o machismo, o racismo e a violência física. Ainda continuam subrepresentados e têm muito espaço a conquistar. Pesquisa revela que entre os vereadores eleitos nas capitais, 44% são pardos e negros, resultado que fica abaixo do seu perfil no conjunto da população brasi-leira. Segundo o IBGE, as mulheres são 51,7%, e os negros e pardos 55,8% do total.

*Jornalista e escritor