Ao retornar às atividades neste início de ano, minha mesa estava com uma quantidade expressiva de CDs que chegaram desde o final de 2019. Uma boa amostra de lançamentos instrumentais também estava à minha frente. A sensação que tive ao abrir os invólucros dos disquinhos foi de... vida. Vigor que brota bonito da sensibilidade de instrumentistas experientes e inexperientes. Na medida do possível, pretendo tratar de todos eles.
Por uma questão carinhosa escolhi o afro+sambas (Biscoito Fino), álbum que traz os nove afro-sambas de Baden Powell e Vinícius de Moraes, regravados na íntegra por Alexandre Caldi (flauta, saxes soprano e barítono) e Itamar Assiere (piano).
Entusiasmados com as influências da música africana e dos cantos de candomblé na música brasileira, Baden e Vinícius convidaram o maestro Guerra Peixe para criar os arranjos e regê-los. Chamaram também o Quarteto em Cy para dividir o canto com Vinícius.
Um parêntese: até aí estava tudo nos conformes. Mas há uma curiosidade: no coro com as Cys estavam as vozes do Ruy e do Magro (só não me perguntem o porquê); bem como não sei dizer o porquê de Miltinho e eu termos sidos “limados” da glória de participar de um disco histórico. Parêntese fechado. E a vida seguiu...
Alexandre Caldi fez dez arranjos, enquanto Itamar Assiere fez um. Eles ainda acrescentaram três sambas aos nove afros-sambas: “Labareda” e “Consolação” (Baden e Vinícius) e “Samba Novo (só de Baden). Mas seja pela contemporaneidade dos arranjos, ou ainda pelas virtuosas interpretações dos instrumentistas, a integridade da obra se mantém saborosa e criativa.
A levada que, por exemplo, empregam em “Tristeza e Solidão”, o meu favorito e um dos afro-sambas mais belos, é de emocionar; “Labareda” tem intro do piano com o sax barítono (cuja som grave é belo!). Há um momento arritmo. Logo depois a cadência desperta e volta. Os improvisos são totais... e assim vão. Já “Canto de Exu” não tem letra, mas vocalises e percussões (show!); em “Canto de Ossanha” o baixo toca notas em pedal, o piano vem, logo o sax sola a melodia e o piano se revela. O ritmo conduz.
Só pela iniciativa de se debruçarem sobre o repertório de um disco que é referência na música brasileira Caldi e Assiere já seriam dignos de aplauso.
Mas não é só: a coragem com que se entregam ao suingue afro-brasileiro e a dignidade com que encararam os arranjos, as harmonias, os andamentos (todos próximos da gravação original de 1966), os improvisos (com gosto de Brasil) e os duos (sem vestígio de saudosismo ou falsa modernidade) são coisas de craque.
Ouvi-los é sentir o sabor de um mundo que (por ora!) não existe mais: um mundo em que a Cultura, no significado mais amplo do termo, está sob fogo cerrado de um desatinado e seus vassalos. Entretanto, a música de Baden e Vinícius, tocadas por Alexandre Caldi e Itamar Assiere, nos recompõe a esperança, e é por ela que estamos de pé, atentos, em busca de saídas que hão de nos redimir.
Aquiles Rique Reis, vocalista do MPB4