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Donald Trump, numa leitura tropical

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O jovem Donald, nascido em berço de ouro e que se lançou no mercado imobiliário com ideias arrojadas e métodos heterodoxos, é o mesmo senhor Trump, de topete assombroso e voz esganiçada, que comanda as preferências eleitorais do povo americano, embora pressionado por uma moção de impeachment na Câmara dos Representantes dos EUA. Não é fácil entender esse Trump, muito menos se ainda encarnado naquele jovem Donald - o empresário e corretor de negócios. Sob a nossa ótica tropical, que mal enxerga nuances e demanda uma impossível nitidez das intenções dos atores da cena internacional, Trump mais se parece com um desajeitado agressor imperialista em busca de ocupação de espaços para os sombrios interesses americanos, especialmente na área do petróleo.

Não é bem assim. Trump é o administrador do fim do monopólio americano. Não é tarefa fácil. Ao final da Segunda Guerra Mundial, a hegemonia dos EUA se consolidou no comércio internacional, na moeda de referência (o poderoso dólar), nas tecnologias de ponta, no armamento convencional e nuclear e até na cultura pop, via cinema, esporte e música. Nos próximos 20 a 30 anos, esse curto século de monopólio americano desde os 1950, terá dado lugar a uma nova realidade, de potências concorrentes e confrontantes - China, Índia e mundo islâmico, apenas para ficar em três blocos - em que os EUA serão mais um ator relevante e forte, contudo, só mais um, e não o hegemônico fator determinante, hoje em ocaso.

Para o topetudo e hiper-competitivo Donald, que mora dentro do bem ensaboado Trump, não tem sido fácil a arte de engolir sapo. Basta fazer as contas. Trump foi à Coreia do Norte, postou que havia educado o malcriado Kim Jong Un, o ditador local, para constatar, meses após, que o atrevido tirano voltou a disparar dezenas de mísseis balísticos no quintal asiático dos EUA e ainda ameaçar com uma "nova arma estratégica". Um super sapo. Trump também quis enquadrar comercialmente a China. Até obteve alguns avanços em empregos industriais domésticos mas, nos próximos dias, os chineses assinarão novo acordo comercial com os EUA que, de fato, lhes será vantajoso no longo prazo em que estão fazendo suas apostas.

Assim deve ser feita também a leitura do affaire EUA vs Irã. Na nossa visão tropical, quem ataca é Trump e o Irã, pequeno diante do poderio americano, é o agredido que se defende e retruca. Mas não. Na sutileza, é bom notar que se trata de uma disputa travada em solo de terceiro país, o Iraque. É este quem pagará a conta. Quem avança é o mundo xiita. Quem se retira do solo iraquiano, embora esbravejando, são os EUA e seus aliados. Novas forças de influência se consolidam na região do Meio Oriente petrolífero. Os atores fortes e silenciosos são, no caso, China de novo, Rússia e Turquia, esta pelos flancos. Israel também luta para consolidar musculatura própria, pois é dela que precisará se quiser ter sobrevida numa região inóspita onde tem escrita sua história milenar.

Na rasa leitura tropical, Trump é um Superman. Nosso presidente assiste ao pronunciamento do colega louro do Norte com o fascínio de quem ficava pregado nos velhos seriados de Wyatt Earp ou do Zorro. Mas a leitura tropical do que se passa no mundo temperado não nos ajuda nada a defender os interesses permanentes do Brasil. Nossa atual representação externa tem dificuldade de distinguir quem ataca de quem se defende, diante da complexidade e das facetas do jogo internacional. O ano de 2019 foi terrível nesse sentido. Apanhamos de graça no campo ambiental, mesmo tendo um dever de casa muito mais bem feito do que noutros países. Por quê? Falta de leitura correta dos atores de fora. Nossos produtos industriais sofreram ameaças e gravames dos EUA como amarga recompensa por um alinhamento incondicional. Em 2020 ouviremos falar dos prejuízos na área agrícola, com o novo acordo EUA-China.

A nova diplomacia de inspiração tropical praticada pelo Brasil não tem a mínima chance de sobrevivência quando alinhada tardiamente e sem condicionantes a um gigante que, ultimamente, vem só recuando enquanto se defende de ataques múltiplos. Os interesses de negócios do Brasil com o país de Donald Trump são importantes, mas não podem se confundir com a alegria juvenil de quem lê uma revistinha do Pato Donald. O Brasil é maior do que isso e não cabe enfiado como soldado raso na trincheira americana. A diplomacia brasileira deve se pautar pelo mesmo protagonismo que o Brasil já demonstra ter no comércio alimentar mundial, nas finanças internacionais (pelo peso de nossas reservas), em energias renováveis e, como potencial, nas trocas turísticas e culturais. Mas, para isso, é preciso antes rever a leitura tropical do mundo.

*Economista e escritor.

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