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O alerta do fogo

Renata Granchi -
Um prédio residencial pega fogo em Ipanema
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As autoridades ainda vão periciar o que causou o fogo no hospital Badim, no Rio de Janeiro. A perícia é fundamental mas não alivia a dor das famílias com a perda dos 11 pacientes mortos na tragédia. Nossa solidariedade carinhosa aos vitimados também chora pelos próximos incêndios, queimadas, desabamentos e inundações que não serão evitados. E por quê? Tragédias ocorrem em qualquer parte do mundo. Enfrentar riscos é parte essencial da natureza humana. A maneira como lidamos coletivamente com os riscos é que define a qualidade de nossas vidas nas comunidades de uma casa, cidade ou país.

O Brasil hoje perde nessas três dimensões do risco social. Nossa casa é agressiva, a rua da cidade é violenta e o futuro do país parece definitivamente turvo. Não espanta o número crescente de desmotivados, deprimidos e potencialmente suicidas - inclusive na população mais jovem.

O Rio desfruta de uma beleza triste. Diante de tantas e sucessivas tragédias, o carioca agora entende por que a beleza de sua cidade chora um pranto mudo e seco. A beleza está naquilo que pode ser apreciado, degustado e curtido sem excessivo risco. Voltar para casa e curtir um jantar com a família já não é bonito se o risco de abordagem por um bandido, na condução ou na porta da rua, for uma possibilidade real. Esse é o Rio inseguro em que nos tornamos. Uma visita ao museu é um belo programa com filhos ou amigos, desde que o prédio não pegue fogo no meio da visita, como ocorreu com nosso Museu Nacional, consumido pelas chamas de um circuito elétrico sem manutenção, felizmente sem vítimas humanas, mas com perdas incalculáveis de valor histórico.

Por que não previmos? Por que não falamos com antecedência sobre os riscos? Por que deixamos os responsáveis pelos ocorridos sempre nas sombras? Novas moradias continuarão sendo toleradas nas encostas até que outro morro venha abaixo, como na Muzema. Mas só vamos constatar isso depois. Imensas reservas florestais serão devoradas por chamas na próxima estiagem, mas o convênio para detecção de incêndios na Amazônia só será assinado quando o Brasil estiver ardendo em chamas no noticiário mundial.

A violência e o infortúnio são primos irmãos da imprevidência. O Rio de Janeiro se tornou uma comunidade largada e imprevidente, se apropriando da cultura nacional do "deixar correr frouxo", do "largar pra última hora", do "passar batido em cima dos detalhes fatais". Se o orçamento público é deficitário, deixa para equilibrar no ano que vem. Se a dívida do Estado está explodindo, vamos esperar para ver o que rola e se aparece alguém pra bancar.

E aos poucos, a beleza do que era bonito por natureza vai desaparecendo, sem que a comunidade (todos nós) se dê conta do empobrecimento da virtude. Prevenir é virtuoso. Remediar é calamitoso. A gestão pública deveria ser a sede da prevenção, onde as políticas de controle de riscos acontecem numa cidade ou num país. São os governos que realizam essa gestão na prática. Mas quem são as pessoas reais por trás da gestão dos governos? São bombeiros ou incendiários? Não serão, eles próprios, os primeiros a tocar fogo no equilíbrio dos orçamentos, a sugerir a esbórnia administrativa como forma diabólica de governança?

O comportamento dos governados se espelha na imagem dos governantes. Quando a beleza de uma cidade se apaga pela truculência de seus líderes, esses governantes não passam de chefes de bando, ateando fogo no patrimônio invisível da cultura, da convivência social, da solidariedade. Aos governados restará o recurso de estender a mão ao desespero dos vitimados, como aconteceu com os atos de bravura e solidariedade dos que acolheram as vítimas do incêndio do hospital.

Mas uma cidade que porta o nome de Maravilhosa não pode depender apenas do tamanho do coração de sua sofrida população. Nem tampouco o país, quando se torna refém do improviso como método de administração.

* Economista e escritor. Sempre morou no Rio e continua esperançoso

Macaque in the trees
Um prédio residencial pega fogo em Ipanema (Foto: Renata Granchi)