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Um presidente bem trapalhão

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O Brasil teve árduo trabalho neste século para consolidar a posição de maior exportador mundial de alimentos. Desde o Brasil Colônia, e com base na escravidão, nos tornamos os maiores exportadores de café, açúcar e cacau. O café chegou a responder por mais de 70% das divisas cambiais do país. Uma perigosa dependência que tolhia o desenvolvimento. Hoje, o café representa só 2% das vendas brasileiras (em grão e em produtos industrializados). O açúcar equivale a 3% das receitas cambiais.

Com a introdução da lavoura de soja, no Rio Grande do Sul, no governo de Leonel Brizola, o Brasil foi se libertando na monocultura cafeeira. Durante três quintos do século 20 a própria produção de milho, feijão e mandioca (alimentos básicos da mesa brasileira) estava ligada ao café, pois era produzido pelos colonos de origem italiana, alemã, espanhola ou japonesa) nas ‘ruas’ do café na rica terra-roxa dos planaltos de São Paulo e Paraná. Com a geada de 1975, o café perdeu a hegemonia nos dois estados. Os fazendeiros inscreveram os trabalhadores no FunRural (com meio salário mínimo, dobrado na Constituinte de 1988, origem de parte do desequilíbrio da Previdência). E a mão-de-obra correu para as cidades. O Brasil se urbanizou aos trancos e barrancos, agravando a desigualdade social.

O café migrou para o Sul de Minas Gerais. As terras paulistas foram ocupadas pela cana-de-açúcar e a laranja, de cujo suco nos tornamos líderes da exportação nos anos 90. No Paraná, a mecanização multiplicou as lavouras de soja, trigo, milho e feijão. Mas, a fase da transição, até as duas décadas seguintes, ficou marcada por crises de abastecimento interno, face às mudanças nas áreas de produção.

A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) salvou a lavoura, com novas espécies de soja, milho e algodão adaptáveis às terras ácidas do cerrado do Centro Oeste (que hoje responde por 47% da produção de grãos, contra 32% do Sul) ao oeste da Bahia e áreas do Sul do Maranhão e Piauí e do Tocantins. O único produto que ainda tem abastecimento sob risco é o feijão, nas suas diversas variedades e cores.

Na virada deste século, ao lado do café, açúcar, fumo em folhas e suco de laranja, o Brasil se tornou líder mundial na exportação de soja, em carne bovina, em carne de frango (que é a soja e o milho em valor agregado). Já somos o 2º exportador de milho e o líder na exportação de celulose de eucalipto, que ocupou em quatro décadas basicamente áreas degradadas por três séculos da Mata Atlântica, com ganho ambiental.

Foi obra de formiguinha. Não tem paternidade de um governo. No século 21 estiveram à frente do país Fernando Henrique Cardoso (PSDB), Lula e Dilma (PT), Michel Temer (MDB) e agora Jair Bolsonaro (PSL). As sementes foram plantadas por milhares de empresários, milhões de trabalhadores do agronegócio e centenas de técnicos em pesquisa agrícola da Embrapa.

Empresários percorreram o mundo como mascates modernos. Hoje o Brasil exporta mais de US$ 100 bilhões anuais pelo agronegócio (quase metade das vendas totais). Melões, mamões, uvas, mangas e melancias da margens do Rio São Francisco fazem companhia ao café, ao açúcar (apesar da resistência dos franceses que extraem açúcar da beterraba) na mesa dos europeus. A transposição das águas do Velho Chico pode ampliar esse potencial.

A maior desconfiança era em relação à qualidade dos produtos. Diante das regras da Organização Mundial do Comércio, países europeus e os EUA (nossos maiores importadores e concorrentes no agronegócio) apelaram a barreiras sanitárias na carne bovina e no frango, produtos em que desalojamos EUA e França do 1º e 2º lugar. A ocorrência de febre aftosa sempre foi alegada para barrar a venda de carnes bovina e suínas. Na exportação de frango, a conquista do mercado árabe exigiu dupla disciplina na alimentação e no abate.

Quando irregularidades grosseiras descobertas na Operação Carne Fraca ameaçaram as exportações de carnes bovina, suína e de frango, o ex-presidente Michel Temer convidou embaixadores dos principais países compradores do Brasil para um churrasco. Essa ação de marketing pontual e o rigor nas normas de inspeção dos abates evitaram o fechamento de mercados.

A certificação de origem para controle da vacinação contra a aftosa no caso do gado bovino, sempre foi uma garantia extra para as vendas de carnes. A rigor, se o Centro Oeste é o grande produtor de grãos, liderados por Mato Grosso, e de carne bovina (neste caso seguido pelo Pará) é bom saber que não se pode confundir Amazônia Legal com região Amazônica. Da região Norte vêm apenas 0,2% dos grãos e 15% da carne bovina produzida no país.

No Código Florestal há três regimes para Mato Grosso. Nas áreas de floresta, é obrigatório a preservação de 80% da mata. Nas zonas de transição, 35% têm de ser preservados e nas áreas cerrado (e demais áreas do país), o mínimo é de 20% preservados. Tradução: quase nada da soja (17% das exportações totais) e do milho (mesmo a parte vira ração para a carne de frango ou de porco) vem de áreas de florestas derrubadas ilegalmente. Idem no caso da carne bovina, fácil de ser detectada a sua origem. O presidente Jair Bolsonaro devia saber disso.

Devia saber também que embora tenha 63% do bioma Amazônia, ele só corresponde a 58% das terras brasileiras. No Peru, que detém 10% do bioma Amazônia, elas equivalem a 60% do território; na Colômbia, 42,4% do território estão na Amazônia, correspondendo a 6,2% do bioma. Na Bolívia, equivale a 45% do país e a 6,1% do bioma. Na Guiana Francesa, de Macron,100% do território estão dentro da Amazônia. Idem no Suriname (ex-colônia da Holanda) e na Guiana (ex-britânica de Boris Johnson). Na Venezuela, de Maduro, que quis tirar casquinha, é quase metade do país.

Nuvens de fumaça de queimadas na Amazônia não chegam sequer a Brasília. Quanto mais a São Paulo. Mais plausível que tenham sido das queimadas de florestas da Bolívia e Paraguai que ardem há mais de uma semana. A imprensa comeu mosca. A seca no Cone Sul é tal que estações de esqui nos Andes do Chile estão sem neve para o esporte de inverno.

Tudo isso poderia servir de álibi ao Brasil. Mas o presidente Bolsonaro, tal qual o personagem trapalhão criado por Peter Sellers, enfiou os pés pelas mãos. Quando o INPE mostrou o crescimento do desmatamento, que precede as queimadas, fez como o doente que em vez de combater as causas da febre, quebrou o termômetro (o INPE) e chamou a atenção do mundo para os incêndios. Atravessou a rua para pisar em casca de banana na outra calçada.

Provar agora que jacaré não é sucuri e distinguir queimadas de incêndios, como diz a Ministra da Agricultura (preocupada, como os grandes empresários do agronegócio, com os estragos da imagem do Brasil), que parte dos incêndios são espontâneos ou vêm da Bolívia e Paraguai, pouco adianta. Chamar o Exército pode estancar o fogo, mas os danos da fumaça estão feitos. As carnes já foram moqueadas. E consumidores mais radicais mundo afora na ecologia podem ficar com má vontade em relação a alimentos made in Brazil.