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Amanhã vai ser outro dia

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“Hoje você é quem manda, falou, tá falado, não tem discussão.”

Assim começa o “Apesar de você”, de Chico Buarque, composto quando o país vivia sob o jugo da ditadura militar. A canção descreve agruras da vida dos brasileiros naquele período e afirma, ao final: “Amanhã vai ser outro dia.”

Depois de um tempo inicial em que os censores acharam que a música se referia a alguma antiga paixão do compositor, perceberam que não era bem isso e a censuraram. Mas ela ficou na história como uma das que animaram a resistência democrática.

Efetivamente, como previu Chico, o “amanhã” foi outro dia. Diferente. E o irmão do Henfil pôde voltar para casa.

Lembro isso agora, nestes tempos bolsonarianos, porque tenho visto gente acabrunhada, “falando de lado e olhando pro chão.” Gente que dá sinais de desânimo. Gente fazendo planos de morar no exterior, num exílio voluntário. Gente começando a imaginar que talvez nunca mais veja um Brasil diferente deste de agora.

É natural que sentimentos de desânimo e tristeza ocorram, diante do verdadeiro festival de boçalidade que assola o país.

Mas é preciso não perder a perspectiva histórica, gente.

Penso na situação vivida pelas populações da Europa Oriental e das regiões da antiga URSS, ocupadas pelos exércitos de Hitler no fim dos anos 30, começo dos anos 40. Naquele momento, pior do que a ameaça ao destino individual de cada um, algo mais assustador se desenhava: a propalada invencibilidade das forças nazistas e a aparente inevitabilidade de sua vitória, que traria como consequência a escravização, quando não o extermínio puro e simples, de parcelas consideráveis da Humanidade, rotuladas como “raças inferiores”.

Fico pensando, também – trazendo reflexão semelhante para a América Latina em tempos mais recentes - no que passava pela cabeça dos dirigentes tupamaros classificados como “reféns” pela ditadura militar uruguaia e mantidos em masmorras medievais durante mais de uma década. O filme “Uma noite de 12 anos” retrata a situação. Ele vai muito além da denúncia da tortura e da barbárie. É uma lição de humanidade. A resistência de Pepe Mujica e seus companheiros, gente que foi de aço nos anos de chumbo, venceu. Eles não foram quebrados como seres humanos.

Volto, por fim, ao nosso país, lembrando a experiência que eu próprio vivi em meados de 1970 – experiência que, é bom que se diga, nem de perto foi comparável àquela dos “reféns” uruguaios. Na época, estive nos porões dos DOI-Codi e, somando-se à difícil situação pessoal, tinha a plena consciência de que a resistência armada à ditadura estava sendo derrotada e que a maioria esmagadora das pessoas estava alheia à política, acompanhando, embevecida, as vitórias da seleção brasileira na Copa do Mundo.

Pois bem, apesar do futuro sombrio que se desenhava nesses três momentos citados, as coisas mudaram.

O propalado Reich dos Mil Anos foi vencido e, em 1945, o exército soviético içou a bandeira vermelha em Berlim.

Mujica tornou-presidente do Uruguai e é hoje a figura mais querida, admirada e respeitada em seu país.

E a ditadura no Brasil acabou na década seguinte à conquista daquela Copa do Mundo.

Assim são as coisas.

Lembro isso a propósito do governo Bolsonaro, entreguista e antipopular, que parece ter como objetivo destruir o país. Sua política econômica está descaradamente a serviço dos bancos e do grande capital, e seus condutores se lixam para o destino de dezenas de milhões de pessoas, jogadas na indigência e na miséria, como autênticos mortos-vivos. Tem como guru um astrólogo ridículo e como eminências pardas três patetas filhos do presidente. Seu Ministério é um ajuntamento de personagens que, não fosse a reforma psiquiátrica progressista que agora Bolsonaro quer sepultar, talvez estivessem internados como doentes mentais.

Mas, apesar de tudo, esta página infeliz da nossa história, com tanta mentira e tanta força bruta, também vai ficar para trás.

Não se afobe não, que nada é pra já. Porém, mais dia, menos dia, quando o carnaval chegar até a moça triste que vivia calada vendo a banda de sua janela se somará aos cegos que erravam pelo continente.

E um samba popular vai passar nessa avenida, em ofegante epidemia, fazendo cada paralelepípedo da velha cidade se arrepiar.

Vai emergir o monstro da lagoa, que, nadando contra a corrente, enfrentará a roda-viva, afastando esse cálice com a bebida amarga.

Ao lado dos barões famintos, dos napoleões retintos e dos pigmeus do bulevar, toda a cidade vai lembrar que aqui passaram sambas imortais e que aqui sambaram nossos ancestrais.

E então vai cantar a evolução da liberdade até o dia clarear.

Pois amanhã vai ser outro dia.

Vamos juntos.

*Jornalista