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Entre o delírio e o real

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Não fosse a República escaldada em experiências multifacetadas, muitas capazes de desconcertar o senso das coisas, teria horrorizado recente iniciativa do presidente, ao divulgar um panfleto que vê o país à beira da ingovernabilidade. Não é documento de sua autoria, mas, se tomou a iniciativa de torná-lo público, indiretamente o endossa. Uma atitude que deve ser levada a sério, não apenas por se tratar de algo que mexe com a primeira autoridade do país, mas por estar seu mandato apenas no quinto dos 48 meses que lhe são confiados; e já sob tamanha ameaça? 

Acresce detalhe não menos preocupante: esse ato, pela gravidade de que se revestiu, devia investigar as fontes responsáveis por tão sensível temor. O presidente detém responsabilidades tais, que uma preocupação que decide expõe há de cercar-se de cuidados, havendo ou não imprevidência ou precipitação no tratamento da questão que gera a insegurança da sociedade. Cabe, portanto, dizer de onde tirou o manifesto até agora apócrifo, e quais as intenções da Presidência ao mergulhar em campo tão delicado. 

Nos anos 60 do século passado, quando disse coisa parecida, o presidente Jânio Quadros, prestes a renunciar, havia esperado apenas sete meses para dar à ingovernabilidade o apelido de ”forças ocultas”. Mutatis mutandis, o mesmo fantasma que Bolsonaro ressuscita agora. Jânio queria forças especiais para governar, sem depender do Congresso, onde via nada mais que um clube de ociosos em permanente conflito de interesses. O que estaria o sucessor pretendendo para espantar o “encosto” do espírito dos vivos que o atormentam? 

Seja o que for, ao presidente, para escudar-se, bastaria alegar que assumiu o comando de um país que padece tamanhas enfermidades, acumuladas e agravadas ao longo de tanto tempo, que seus brevíssimos cinco meses são apenas gotas analgésicas num corpo que exige cirurgias profundas. Talvez fosse melhor se dissesse isso. Nada mais que isso, sem ameaças de ingovernabilidade. 

Mas, tenha ou não o presidente alguma razão para o desabafo, os desencontros que vão se sucedendo nas relações entre os poderes, centrados principalmente no diálogo acidentado entre o Executivo e os deputados, surgem como peças adjutórias para deixar nu esse presidencialismo de coalizão, em cuja essência predomina certa interdependência serviçal; um vasto e caro jogo de interesses particulares. É o que tem regido a conduta de relações que deviam ser respeitosas, curvadas apenas às causas nacionais. O modelo se apequenou, agravado pela tendência dos partidos a se imporem com instrumento oligárquico. Sendo assim, é forçoso reconhecer que a nova legislatura, se mudou muitas caras, preservou a velha lição de pragmatismo ensinada por Badaró (pai): mais vale quem o governo ajuda do que quem cedo madruga. 

Esses desajustes, distribuindo pedras e espinhos pelos caminhos da República, acabam por sugerir que temos perdido um precioso tempo com a falta de coragem para encarar o que realmente poderia descortinar novo tempo para as relações políticas: o parlamentarismo. É uma ideia que se cerca de simpatias quase unânimes, mas não ousa sair do papel e ganhar o debate entre as lideranças. Ficou esquecida após a desastrosa experiência com João Goulart. Quase como coisa de inoportunidade perpétua. Mas não deixa de ser o melhor remédio para essas dores que ferem nos costados do Brasil. Principalmente se a ingovernabilidade sair dos delírios para ser ameaça real.