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A lama que não vale

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– O pai tá demorando demais. Ele nunca trabalhou tanto... – reclamou o menininho à sua mãe. Esse pai (funcionário terceirizado da Vale) nunca mais voltará, como outros 347 mortos e desaparecidos com o rompimento da barragem 1 da Mina do Feijão.

Para além dos números, cada um que foi soterrado tinha uma história de vida, expectativas, sonhos. Cada um deixa saudade, perplexidade, imensa dor em milhares, a começar pelos seus parentes e amigos. Para sempre.

Lama pode ser a argila que gera tijolo, telha, casa, pode ser matéria orgânica fértil. Lama é também o mamífero camelídio, mais conhecido como lhama. Lama é sacerdote budista no Tibete. Lama virtuosa, que não faz mal.

A lama de que falamos agora é tragicamente outra: mortal, tóxica, poluente. Devastadora. Criação do homem associado em empresa e movido a ânsia de lucro. Lama é também, no sentido figurado, “caráter daquilo que degrada, envergonha; ação vil, baixeza” – ensina mestre Houaiss.

A lama não é de Brumadinho nem do Córrego do Feijão, é da Vale. Como não foi de Mariana, Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, e sim da Samarco/Vale/BHP Billiton. Não se pode estigmatizar cidades e povoados.

O tsunami da lama destruidora que engoliu prédios, plantações, vagões, carros, ponte, gado e gente, muita gente, não foi acidente: foi crime. E todo crime tem seus responsáveis. Encontrá-los não é difícil, pois eles já tinham praticado ação semelhante há três anos e três meses antes do horror do 25 de janeiro de 2019. Na mesma Minas do corpo secularmente espoliado.

Dom Joaquim Mol, bispo católico e reitor da PUC Minas, foi agudo contra o que chamou de “homicídio coletivo”: “riquezas das Minas Gerais, seus minérios e tantas outras maravilhas, que tão generosamente nos foram dadas pelo Criador, transformaram-se em sua perdição. Minas vê, gravíssima e rapidamente, seus rios, lagos, afluentes, terras agricultáveis, comunidades e suas culturas sendo dizimadas.(...)Repito o papa

Francisco: do modo que se realiza, esta economia mata!”.

Falei de uma ação repetida. Qual? A do descuido, do plano de emergência que não funciona, da sanha do lucro, do desprezo pela vida humana, do modelo predatório de exploração mineral que ainda vigora no Brasil. Para agravar, há o jeito de “ressarcir prejuízos” que os responsáveis pela destruição organizam: protelação na Justiça, dinheiro imediato como “cala-boca”, cooptação de alguns dos vitimados para que aceitem as condições impostas, discurso da inviabilidade de mais controles, por “caros e de eficiência duvidosa”.

Tem também a lama dos governantes e dos legisladores. Testemunhei a resistência a qualquer exigência maior sobre as mineradoras por parte da bancada por elas financiada. Chamam essa situação que gera extermínio em massa de pessoas e do meio ambiente de “progresso”. Na regulamentação da lei, Executivos estaduais e federal também são todo ouvidos para os empresários, e dão de ombros para os anônimos moradores das áreas de extração e para o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).

Nada de novo no triste horizonte: erguem-se barragens seguras contra uma investigação séria. O governo central fala em “flexibilizar licenciamentos”. Os chefes do Legislativo Nacional, Maia e Alcolumbre, ambos do DEM, não têm mínima identidade com a questão ambiental e parecem sequer se sensibilizar com o ecocídio, pois medidas para conter essas avalanches mortais não foram colocadas como pautas prioritárias.

Enquanto os do poder seguem com os mesmos (ul)trajes de sempre, Leidiane e Neiriane, filhas de Paula, arrumadeira da destruída Pousada Nova Estância, repetem o clamor pungente de um povo secularmente deserdado: “minha mãe, minha mãe! Onde está a nossa mãe? Ela está sozinha nessa lama. Não nos dão informação. Estamos no desespero”.

Essa lama degradante e vil não pode continuar a escorrer.

* Chico Alencar é professor e escritor