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Armai-vos uns aos outros?

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A decisão do governo Bolsonaro com maior carga concreta e simbólica, até aqui, foi a do decreto que facilita a posse de armas pelos indivíduos. Sem reversão, ela expressa com exatidão o cimento ideológico e político dos que, hoje, detêm o poder na República: individualismo, apequenamento do monopólio da força pelo Estado democrático de direito, aversão à solidariedade, descrença no Poder Público.

Essas marcas, somadas a iniciativas contra os povos indígenas, os quilombolas, os trabalhadores, o meio ambiente, a educação e as amplas relações exteriores, constroem o que se pode chamar de protofascismo brasileiro. Como seus congêneres, respaldado na aceitação do chamado senso comum, do pensamento médio da sociedade brasileira – já desconfiada do próprio voto, é verdade.

Paradoxalmente, jamais um governo na história da nossa República foi tão confessional. Muitos ministros fazem questão de proclamar suas convicções religiosas: uma se disse “terrivelmente (!) cristã”, outro tatuou versículo bíblico no braço, “para nunca mais errar”. O slogan vencedor nas eleições, repetido à exaustão, prega “Deus acima de todos”.

Pois nem essa cristandade baluartista foi capaz de amenizar a sanha armamentista dos novos cruzados. Um ministro general chegou a comparar arma de fogo, fabricada para matar ou intimidar, a automóveis, criados para transportar. Outro foi além, assemelhando pistola a liquidificador. A teóloga Maria Clara Bingemer lembrou o que os recitadores de trechos bíblicos esquecem: a reação de Jesus no limiar de sua morte, quando pediu para seus discípulos não reagirem com a espada, pois “os que a tomam morrerão por ela” (Mateus 26,52). O papa Francisco denuncia com frequência a contradição entre os que falam em paz e promovem o comércio de armas.

Há também uma questão de eficiência. Está constatado por pesquisas, em diferentes países, que o risco de tirar a própria vida, perdê-la em um acidente ou em um confronto é três vezes maior para quem tem arma de fogo em casa do que para quem não possui esse objeto mortífero. Como reagiriam os defensores do armamentismo se os sem-teto, sem-terra e povos nativos pleiteassem armas de fogo, em legítima defesa de seus direitos e terras?

Exacerbado no neoliberalismo do “cada um por si”, o Estado vai se desobrigando da necessária tarefa de garantir segurança pública para todos, entregando a cada pessoa sua autodefesa. Muitas brigas domésticas e discussões de trânsito terão desfechos trágicos. Os casos de feminicídio, tão presentes na nossa sociedade patriarcal e machista, crescerão. Os jagunços dos grileiros de terras, que avançam sobre territórios indígenas, ficarão ainda mais à vontade. As polícias sentem-se, desde já, autorizadas a matar, até descuidando de forjar “autos de resistência”.

Enquanto isso, são minimizados o urgente combate ao tráfico de armas, a marcação das munições e uma campanha pelo recolhimento do armamento ilegal, com ações de inteligência e metas trimestrais. Cada um é exortado a ser seu próprio xerife. Isso tudo é regressão civilizatória. Lembrava o admirável e querido Marcelo Yuka (1966-2019), “o povo confunde justiça com vingança”. Esquece-se o alerta de Gandhi, com a autoridade da não-violência ativa que ajudou a libertar a Índia do imperialismo: “na linha do olho por olho, em pouco tempo estaremos todos cegos”.

O fascínio de Bolsonaro e seus sócios pelas armas de fogo é tão grande que o clã dá até tiro no pé: Flávio, o filho mais velho, recorreu ao STF para fazer valer já prerrogativa futura de foro, no caso das investigações sobre seu motorista e segurança Queiroz (esse paciente do Einstein que pedia empréstimo ao amigo Jair mas movimentou R$ 7 milhões). O chamado “01” federalizou o problema e, em fevereiro, vai voltar a ser alvo, já com a dor de ter que se explicar como senador.

*Chico Alencar é professor de História, escritor e deputado federal (PSOL/RJ) até 31/1/19