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Assinou, não leu...

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Na primeira semana do novo governo tivemos uma enchente de discursos ideológicos e escassas indicações sobre reformas e medidas efetivas de governo. Ela terminou com o presidente Jair Bolsonaro fortalecendo ontem a percepção de que terceirizou a gestão em seu governo para manter-se no palanque, brandindo a retórica de guerra. Demonstrou não ter lido ou entendido o decreto que assinou, ao confirmar um aumento de IOF desmentido pelo secretário da Receita. Pregou um susto passageiro com outra declaração também desmentida, e contrária ao ajuste fiscal, a de que a alíquota de imposto de renda dos que ganham mais de 27,5% seria reduzida para 25%.

Frustraram-se, na posse, os que esperavam um Bolsonaro comedido e imbuído da liturgia do cargo, ao ouvir discursos que tangenciaram os problemas nacionais e enfatizaram o combate às “ideologias”, algo que ele entende ser um atributo exclusivo da esquerda, como se não fosse ele também portador de uma ideologia extremada, que promete converter em ações de governo. E o delírio ideológico avançou semana adentro, com o ministro Lorenzoni demitindo servidores para “despetizar” a Casa Civil, embora os petistas já tenham sido enxotados da Esplanada há mais de dois anos; com o chanceler Araújo misturando Deus, novela, rock e antiglobalismo; com a ministra Damares ensinando que na nova era meninos vestirão azul e meninas vestirão rosa; com o ministro da Saúde, Mandetta, que na Câmara era um deputado de raciocínio brilhante, descobrindo que a distribuição de preservativos pelo programa antiaids “ofende as famílias”.

Nesta algaravia, mercado e analistas pinçaram a fala do ministro Guedes como sendo a voz da racionalidade no governo. Mas mesmo ele escorregou, avisando que se a reforma previdenciária não passar poderá propor o fim das vinculações orçamentárias constitucionais, que o Congresso não aprovará nem que a vaca tussa. Ameaça inútil e nefasta, que melindrou o Congresso e sugeriu pouca confiança na aprovação da reforma. Não apresentou sua própria proposta, acenando com medidas infraconstitucionais, enquanto outros membros do governo falavam em aproveitar a proposta de Temer. Desafinando mais uma vez, na entrevista ao SBT, na quinta-feira, Bolsonaro falou idade mínima de aposentadoria de 62 anos para homem e 57 para mulher. A proposta de Temer propõe 65 e 63 anos, respectivamente. Não foi desmentido mas seguramente a equipe de Guedes defende regras mais duras.

Assim será: Guedes vai governar a economia, Moro e os militares vão controlar os aparelhos de repressão, seja ao crime ou aos adversários, enquanto Bolsonaro e o núcleo ideológico vão alimentar a base bolsonarista com a retórica de guerra às ideologias e pregações moralistas. Bolsonaro tem que arranjar logo sua porta-voz militar, para evitar vexames como o de ontem. O decreto que ele assinou não aumentou IOF nenhum. Apenas regulamentou benefícios tributários na área da Sudam e da Sudene, aprovados pelo Congresso, explicou Marcos Cintra, secretário da Receita.

Uma impropriedade grave ele cometeu na entrevista ao SBT. Irritado com os governadores do Nordeste, região em que perdeu a eleição, mencionou boatos de que não colocariam seu retrato na parede e disparou: “espero que não venham pedir nada a mim, porque não sou o presidente deles. O presidente (deles) está em Curitiba”, numa referência a Lula. Ao tomar posse, ele jurou “defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil.” Negar ajuda a um estado é deixar de sustentar a União.

A bravata não durou. Ontem o governador petista do Ceará, Camilo Santana, pediu tropas federais para enfrentar a onda de violência. O ministro Sérgio Moro inicialmente negou, depois cedeu. Bolsonaro destacou a ajuda ao estado cujo governador “tem uma oposição radical a nós”. Menos mal que tenha compreendido seu dever federativo.