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O teto Macunaína, sem nenhum caráter

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Publicado em 24/10/2021 às 07:47

Alterado em 24/10/2021 às 07:48

Roberto Campos Foto: Câmara dos Deputados

“Virgindade é para ser rompida, em nome da procriação e do avanço da humanidade”, apud Roberto de Oliveira Campos. Não sei se a frase seria dita pelo economista, senador, deputado, ministro do Planejamento (1964 a 1967), um dos fundadores do BNDE (só ganhou o S de social em 1985, na Nova República de Tancredo Neves, exercida pelo vice-presidente eleito de forma indireta, José Sarney). Recorro a Roberto de Oliveira Campos por dois, ou melhor, três motivos. Primeiro, pela trajetória marcante, controversa, mas que guarda alguma coerência, deste mato-grossense nascido em Cuiabá, em 1917, que foi estudar teologia e filosofia em seminários mineiros de Guaxupé e Belo Horizonte, e teve presença marcante na vida nacional desde que se mudou para então capital federal, no Rio de Janeiro, onde, aprovado em 1939 para um concurso público no Itamaraty, iniciou profícua vida diplomática. Creio que Campos poderia perfeitamente acolher esta frase entre as citações com as quais gostava de abrir seus textos e artigos polêmicos na imprensa.

O segundo e o terceiro motivos estão no governo Bolsonaro. São o ministro da Economia, Paulo Roberto Nunes Guedes, e o presidente do Banco Central, Roberto de Oliveira Campos Neto. Este, como o nome aponta, não necessita de maiores explicações. Mas Guedes e Campos Neto são os guardiões da moeda e do controle da inflação. Como o czar da Economia que mais enfeixou poder em suas mãos - talvez só Delfim Neto, no governo do general Médici, que sucedeu à Junta Militar que assumiu o país por quase dois meses, após o impedimento de Costa e Silva por um AVC, tenha tido tanto poder, no auge da ditadura militar - Guedes tem a imensa responsabilidade de zelar pela solidez da moeda (as notas do real são assinadas por ele e Campos). E a solidez da moeda tem como um dos princípios, ensinava Campos, a austeridade fiscal. A pandemia não pode servir de desculpa (perdão ou “waiwer”, como prefere Guedes) para atender a aventuras eleitorais e livrar o clã Bolsonaro da prisão em caso de derrota.

Paulo Guedes tem de se penitenciar perante seu antigo mentor. É que, pós-graduado em Economia nos Estados Unidos, como Roberto Campos, Paulo Guedes, quando voltou ao Brasil, de Chicago, com escala no Chile de Pinochet, no começo dos anos 80, foi trabalhar no Ibmec (no Rio, que era mantido pela Bolsa de Valores do Rio de Janeiro e recebia ajuda do Ministério do Planejamento). Paralelamente, atuou por vários anos, juntamente com o advogado e economista Paulo Rabello de Castro (que presidiu o BNDES e o IBGE no governo Temer), como assessor econômico de Roberto Campos. A atuação de ambos fornecia subsídios ao então senador por MS (1983-1991). Guedes e Rabello largaram a função no meio do mandato. Guedes participou da criação da Pactual Distribuidora, em 1985, com Luiz Cezar Fernandez (um dos fundadores do Garantia) e André Jakurski, iniciando carreira vitoriosa no mercado financeiro, quando formaram o Banco Pactual.

Qual Macunaíma, o “herói sem nenhum caráter”, que segundo Mário de Andrade “nasceu na boca da noite no meio da mata virgem, com a pele escura”, mas “virou branco ao tomar um banho de cachoeira” (o cineasta Joaquim Pedro de Andrade fez isso com naturalidade no filme de 1969: Macunaíma “nasceu” Grande Otelo e virou Paulo José após o banho de cachoeira), Paulo Guedes parece renegar o passado de veemente defensor da austeridade fiscal. Comprometido com a reeleição do presidente Jair Bolsonaro, para quem, deixando de lado a demorada e incerta reforma tributária, com a taxação dos dividendos, bolou “pedaladas fiscais” para tornar complacente o teto dos gastos fiscais (elevados de R$ 1.610 bilhões em bilhões no Orçamento Geral da União no ano eleitoral de 2022, para R$ 1.657 bilhões. Isso foi feito mediante a troca da base de reajuste da inflação (IPCA), de julho para dezembro, já que o IPCA está em alta, como o dólar que corrige seus milhões da “off-shore” de gaveta depositados na filial do suíço UBS, no paraíso fiscal das Ilhas Virgens Britânicas), Guedes passou a justificar outras pedaladas no teto “conversível”, esticado em R$ 83 bilhões, para turbinar o Auxílio Brasil, a maquiagem no Bolsa Família, que passará de 14 para 17 milhões de pessoas, com R$ 400 mensais, na tentativa de recuperar a popularidade de Bolsonaro. Seus principais auxiliares, donos das chaves do cofre do Tesouro Nacional, não concordaram com o estelionato e se demitiram.

Empenhando na função de “Tesoureiro da Campanha”, de Bolsonaro, que sonha (via emergência temporária do Auxílio Brasil turbinado só em 2022) com a volta de uma popularidade que chegara a mais de 60% (entre Bom/Ótimo e regular) de maio a setembro de 2021, quando o Auxílio Emergencial ficou em R$ 600, mas despencou para apenas 27% de Bom/Ótimo na última sondagem de setembro, quando 56% declararam a gestão Ruim/Péssima e apenas 14% a consideraram Regular(a pesquisa de outubro está sendo concluída), Guedes foi patético na 6ª feira, enquanto o mercado financeiro especulava sua saída. Ao lado de um sorridente presidente da República (que não se constrange com quase 605 mil mortos pela Covid; por que seria diferente por burlar a austeridade na base do “tudo pela reeleição”?), mas foi ao Ministério da Economia para demover Guedes de pedir o boné, o ministro teve a cara de pau de dizer, esta pérola: “Adianta tirar 10 em austeridade fiscal e zero no social?”.

Pela alta de 10% no dólar este ano (na verdade uma desvalorização do real na faixa de 8%) e uma inflação que já passou de 10% e encareceu muito mais a carne (cada vez mais sumida da mesa do brasileiro), a alimentação, o gás de cozinha, os combustíveis e a energia elétrica, é muita cara de pau manifestar preferência pelo social. O maior inimigo dos pobres é a inflação. Numa plateia de executivos financeiros, alguém pode achar graça da “boutade”. Para a população que cata comida no lixo ou disputa sobras de ossos em caminhão de frigorífico para pôr na sopa, é um acinte. Um escárnio tão inaceitável quanto o esgar de Bolsonaro encenando as mortes por Covid-19. Prudente, Guedes, pelo menos, não imitou alguém morrendo por falta de comida, como fez o presidente ao debochar de uma vítima da Covid-19 com falta de ar.

Sugiro a Paulo Guedes reler um pouco da trajetória de Roberto Campos. Ele deixou o governo JK, para quem elaborou o Plano de Metas em cima de um mínimo de austeridade, quando os gastos com a construção de Brasília fugiram do controle e o JK teve de romper com o FMI. A grande influência de Roberto Campos para a modernização da economia foi sua atuação polêmica como ministro do Planejamento e formulador do PAEG, o plano de estabilização do 1º governo militar, chefiado pelo marechal Castelo Branco. A correção monetária, que restabeleceu o crédito público (com as ORTNs), permitiu a montagem do financiamento a longo prazo do Sistema Financeiro da Habitação e outros projetos de longo prazo de retorno, na infraestrutura, a criação do Banco Central, e as reformas bancária, do mercado de capitais e a criação do FGTS para facilitar fusões e incorporações de empresas quebradas e inviáveis com o passivo trabalhista da estabilidade após 10 anos de vínculo, foram algumas de suas reformas estruturantes. Antes da posse do marechal Costa e Silva, em março de 1967, deixou pronta a reforma tributária com a substituição do IVA pelo ICM. Junto com Octávio Gouveia de Bulhões (na Fazenda), Campos entregou um país saneado fiscalmente e preparado estruturalmente para crescer. Coube ao novo ministro da Fazenda, Antônio Delfim Neto, pisar no acelerador (o Banco do Brasil encolhera o crédito em 1965-66) e pilotar o “milagre brasileiro”, que não resistiu à 1ª crise do petróleo, em 1973.

Lembre-se, também, de Mário Henrique Simonsen, que pediu demissão do Ministério do Planejamento, no governo do general Figueiredo, em agosto de 1979, quando uma ala do governo (à frente Delfim, ministro da Agricultura, e Mário Andreazza, Ministro do Interior e postulante à sucessão de Figueiredo em 1984) queria gastar à vontade, abandonando o ajuste fiscal de Simonsen iniciado no governo Geisel. Delfim virou ministro do Planejamento. Ordenou aos empresários para “tacarem pau na máquina” e a máquina pública brasileira entrou no colapso da dívida externa que gerou a década perdida dos anos 80/90 (tão citada por Guedes nos tempos em que era atiradeira). Agora ele é vidraça, mas pôs de lado a austeridade e tudo o que disse sobre ajuste fiscal para vender ilusões.

Pesquisa da revista "Exame", com o Instituto Ideia, divulgada na última 6ª feita - mas encerrada na véspera, 21 de outubro, antes dos ruídos da demissão de Bruno Funchal do cargo que era antes de Waldery Rodrigues (ex-secretário Especial da Fazenda e Orçamento), demitido em abril, e Jeferson Bittencourt, Secretário do Tesouro Nacional (cargo antes ocupado por Funchal) - mostrou que 52,8% consideram o governo Bolsonaro Ruim/Péssimo; 21,1% o acham Regular, e só 23,4% o consideram Ótimo/Bom. As mulheres, em sua maioria (60%), reprovam o governo. E a maior queixa em relação ao governo é justamente a má gestão de Paulo Guedes na inflação, considerado o grande problema por 79% dos 2.195 entrevistados. A alta dos alimentos é a principal queixa dos que ganham até dois salários mínimos (R$ 2,2 mil, a maioria do eleitorado); já para quem ganha acima de cinco salários (R$ 5,5 mil), que é a minoria, 63% consideram os combustíveis os itens que mais sobem.

Um dado preocupante da pesquisa é que 42% dos brasileiros discordam que a economia vá melhorar nos próximos seis meses. É muita gente com incertezas em relação ao futuro da economia, no médio prazo (as projeções de bancos e consultorias apontam que o PIB vai murchar em 2022, com juros mais altos até 10% ao ano para a taxa Selic que pode subir mais de um ponto esta semana, como insinuou Guedes “o Banco Central precisa parar de correr atrás [da inflação que passou de 10%] para tentar domar a inflação). Isso tem uma correlação com a aprovação do governo: 55% dos que avaliam o governo como ótimo e bom acham que vai melhorar e quem avalia mal é justamente o contrário [66% ruim e péssimo]. É um sentimento geral de desconfiança e incerteza em relação à melhora econômica”, diz Maurício Moura, fundador do Ideia, instituto especializado em opinião pública.

E Moura acrescenta um dado curioso e preocupante para os estrategistas de Bolsonaro: “em relação à avaliação do governo, os indicadores do presidente continuam bastante reativos. A gente vê um ruim e péssimo acima de 50%, o que é muito perigoso porque essa parcela é de difícil desconversão. A aprovação de Jair Bolsonaro, apesar de bem resiliente, na casa de 25%, no histórico é muito inferior aos pares dele que conseguiram a reeleição no Brasil pós-redemocratização - Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff. Bolsonaro tem duas variáveis bastante preocupantes para uma possível reeleição: forte rejeição refletida na avaliação ruim, e baixa aprovação”, acrescenta Maurício Moura. O que você acha, caro leitor e futuro eleitor?

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