Por Coisas da Política

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COISAS DA POLÍTICA

Um leão insaciável

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Publicado em 08/06/2021 às 09:02

Alterado em 08/06/2021 às 09:02

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A poucos dias de expirar o prazo para o contribuinte encaminhar a declaração de renda, muitos, não necessariamente com a intenção de sonegar, preferiram deixar o cumprimento dessa obrigação para a última hora. Duas semanas antes, estimava-se que eram quase três milhões. São os que declaram, mas esperam a hora fatal, fenômeno que se repete todo ano; e acabou despertando a atenção do professor Renato Dimas, um dos mais recentes e ilustres mineiros a ter a vida ceifada pela Covid 19. Escreveu ele, certa vez, com o fervor dos mestres de tempos antigos, que a demora desses contribuintes não é descuido, mas uma forma de reagir ao fato de tratar-se de um imposto injusto; mais ainda, por praticar a maldade de incidir, em diferentes graus de tolerância, sobre ricos e pobres. Estes - coitados! - geralmente padecem dos descontos na fonte de trabalho, o que lhes garante a virtude cívica involuntária de não poder sonegar. Diferentemente do contribuinte poderoso, contemplado com a faculdade dos recursos e de certas deduções, que permitem escapadas tangenciais.

O imposto de renda, mais ou menos no formato que temos hoje, fará 100 anos em 2022. Valeria aproveitar o centenário para se propor a revisão do modelo, começando por conter o feroz animal que o simboliza, um guloso que exige para si o filé na partilha injusta. Para começo de conversa, caberia ao poderoso leão rever a abrangência da alíquota de 27,5%, um confisco que pesa demais, porque o estado dá em troca muito pouco; e esse pouco chega com imperfeições, corroído pela catástrofe da corrupção generalizada, que vem do poder central, sempre contido na hora de distribuir. Costuma-se dizer que em outros países cobra-se até mais. Mas a comparação é estrábica. Não enxerga tudo. Naqueles, o imposto que o contribuinte paga vai socorrê-lo, no essencial, do berço ao túmulo.

A Reforma Tributária, repetidamente prometida pelo Congresso Nacional, podia lançar mão dessa oportunidade para que, no alcance de tudo que se pretende aperfeiçoar, cuide também de conter a gula oficial.

Em passado recente, José Nêumanne Pinto definiu bem esse imposto, que as pessoas só gostam de declarar na undécima hora. “Ao longo dos anos, o estado brasileiro protagoniza cenas explícitas de tirania cruel, deslavado desinteresse pela Justiça e covarde desfaçatez, quando espalha os bisturis com que esfola, sem piedade, os desprotegidos cidadãos da classe média”. Não há negar. Essa classe dos intermediários é sempre convidada a fechar o vácuo tributário deixado pelos pobres, que não podem pagar, e os ricos, que podem, mas sabem como não pagar.

Não passa sem lembrança o que, a propósito, contava o professor Miguel Reale, segundo o cronista já mencionado. Para o jurista, a tragédia da sociedade brasileira, frente ao imposto de renda ”é o próprio símbolo do fisco federal, o rei das feras, aquele que reserva para si mesmo, sem a menor cerimônia, o mais suculento naco da injusta divisão”. O resto da selva que se dane. Certamente também desejaria o mestre que o animal fosse contido, ou, pelo menos, não tão animado nas mordidas. Um leão ideal, como o Marrusko, que poeta Murilo Mendes conheceu num circo do interior: desdentado, amnésico e vegetariano…

O risco do precedente

Muito se fala sobre a celebridade do momento, general Pazuello, já não mais por causa de seu desempenho na CPI da Covid 19, mas graças ao gesto insólito que o levou a participar de evento público e político, no qual a figura central era o presidente Bolsonaro. Li muito sobre o assunto, ouvi o suficiente do que se tem falado a respeito, mas sobre a atitude desse general falta destacar o que pode ser a promessa de um grave e embaraçoso constrangimento, muito possível de acontecer. Pergunto, então: e se um outro general subir ao palanque de Ciro, de Lula ou de qualquer outro para emprestar solidariedade a quem se lançar na disputa presidencial? Qual o superior que bateria o rebenque nas pernas do indisciplinado? Pazuello foi o primeiro, mas pode não ser o único.

O perigo, pois, está no precedente.

A esta altura da discussão sobre como lidar com o general, se o que se pretende é preservar o rito da disciplina, tão pregado pelas Armas, melhor seria aproveitar o pretexto de sua prestigiada volta ao governo, e convencê-lo a tomar o caminho da reserva, para não incomodar e não ser incomodado na ativa. Mesmo assim, punindo, o Exército tem de fingir que não lê sua própria história, ocupada com quarteladas e golpes, estes sim, muitas vezes, quebraram a disciplina, a hierarquia e ofenderam a Constituição. Mas, no modesto caso do general estrategista seria uma saída acomodatícia.

(Sempre haverá tempo para velhos panos quentes, que, mesmo sendo quentes, ajudam a esfriar tensões. Desaquecido o clima, também ao presidente deixaria de se impingir a acusação de colocar o generalato sob suas botinas capitãs).

O perigoso caminho que se abre, por força da precedência, a outras manifestações políticas que o Exército tem na conta de afronta à disciplina, é o que se sobrepõe a tudo que se disse e ainda se dirá sobre o episódio, que, para muitos, também mexe com as memórias dos idos de 64, quando a imprudência política, vestida de farda, ajudou a arrastar o país para a ditadura.

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