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Levando ferrinho

Elisa Lucinda / JB -
"Vivemos um momento difícil na vida brasileira, porém inevitável. Cabe a nós olharmos com muita atenção para todas as violências e quedas que muitos dos nossos direitos estão tomando"
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Até que seu Ogum veio no Dia de Reis e me libertou. Mas foi processo: O punho quebrado em várias partes. Caí do teto enquanto fazia arte. Não houve desequilíbrio. Apenas me apoiei numa parede que não estava mais ali, do lado do beliche que sempre ali estivera, a não ser naquela hora nova em que o desencostamos dela para forrar com tecido de chitão o meio do céu do quarto. Uma placa de titânio e sete pinos agora me compõem. Estão engendrados ao osso sustentando a carne. Vim da oficina. A equipe do dr. Leonardo e dr. Deomar fizeram um trabalho incrível. E ainda puseram um ferrinho como uma viga dentro da engenharia pra nada colar errado. Ó, munheca magna, como precisamos de sua manobra. Ficou um ganchinho do ferro do lado de fora e virei Capitã Gancho por pouco mais de um mês.

No primeiro curativo passei mal, pressão despencou, teto preto, enjoo, suor frio em visíveis gotas, palidez. O que é isso doutor? “Pós-trauma, querida. Você relembra, ao ver o machucado, todo o estresse da queda. Você caiu de uma altura importante.” Até aquela altura, não sabia que existia altura importante. 3,80 metros tinha que ter quebrado algo. Graças a Deus que foi o pulso e tem jeito. No entanto, segui passando mal ainda nos três curativos seguintes. Aprendi a fazê-los e não requisitei mais enfermeiras, mas não sem chorar de tristeza ao ver o retrato da cirurgia. Por que chorei com esta cena? A terapeuta explicou: “Seu pulso também é Elisa! Vê-lo com peças e pontos enfiados dói. Não é rosto, mas também é espelho. Você olha e não se reconhece assim, ferida.” Na festa do final de ano do Tá na Rua, encontrei Amir Haddad. Desabei no colo dele. “Não caia, fique forte, preciso de você, Isso é Bolsonarite!” Não era só o cair, me machuquei. Fomos rindo, levando aquela prosa filosófica do mestre. De repente, rompe no ambiente, o menino anjo Gabriel, filho da Geo, meu afilhado. A inocência, ignorante das pequenezas do mundo, fez com que ele beijasse meu braço, lançasse, desde o ombro até a mão, cardumes de beijos de uma criança de 8 anos. Sem nenhum problema com gazes, ataduras, a ponta do ferrinho para fora da carne. O menino iluminado que ainda não foi contaminado pela loucura nojentinha dos adultos terminou a sessão carinhosa, pondo seus olhos nos meus dizendo: “É pra ficar bom logo.” Eis uma macumba de erê que não parou de fazer efeito. Choque. Aquele menino tratara o meu braço como eu não tinha feito. Na noite da cirurgia, o efeito da anestesia passou mais rápido do que o esperado e acordei logo depois da meia-noite com dores lancinantes. A dor do osso é estrutural, âmago, a última coisa antes da alma. Na viagem da morfina via no quarto penumbra o membro todo enfaixado. E delirava: Olha, um braço! De quem será? Tá se mexendo! Não parecia meu. Me sentia mal em minha presença aviltada. Foi assim até essa noite da lição do doce querubim. Passei a beijar meu braço igual o pequeno fizera, a massagear com óleos curativos a mão, a fazer contato com aquele difícil espelho que afinal também era eu. Segui numa sequência de limitações: abrir e fechar sutiãs, vestidos, calcinhas. Tudo devagar, na importância de olhar para o que é um difícil espelho.

Vivemos um momento difícil na vida brasileira, porém inevitável. Cabe a nós olharmos com muita atenção para todas as violências e quedas que muitos dos nossos direitos estão tomando. Precisamos aprender com esta grande derrota que um projeto de país está sofrendo. Vai passar; Uma constituição ainda nos protege. E o Brasil novo traz surpresas no alguidar. Somos muitos.

Fui à praia, mergulhei em Yemanjá no Dia de Reis, pedi: “Determine quem há de me salvar, mãe. Não aguento hospital outra vez mais a anestesia para retirar o ferro. Voltei para casa e dormi. Acordei e não via mais o que me lembrava a escravidão e imagens de tortura. Onde estaria? Achei, debaixo do travesseiro. Saiu sozinho. Ao mesmo tempo a feridinha por onde ele sai fechou rapidamente, como num filme de super-herói ou de magia. Yemanjá designara Ogum para tal feito. Foi ele sim, o ano é dele. Agora é com ele, o que executa a lei. Tudo vai passar, aprendi. Lutemos. O ferrinho que a gente está levando vai sair. O que está acontecendo não devemos negar. E aí o ferrinho sai, sem nem doer, sem a gente notar.

Macaque in the trees
"Vivemos um momento difícil na vida brasileira, porém inevitável. Cabe a nós olharmos com muita atenção para todas as violências e quedas que muitos dos nossos direitos estão tomando" (Foto: Elisa Lucinda / JB)