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O baile das máscaras

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Depois do dilúvio, o baile de horrores que, por um lado, protagonizou a história de nosso país nessas eleições, o Brasil enfim se percebe. Caíram por terra os já capengas conceitos de democracia racial, e o “todos são iguais perante a lei”, embora seja artigo constitucional. Não conheciam esse Brasil que nós conhecíamos. Há muito tempo estamos falando do racismo no Brasil, mas essa é a primeira vez na história do abolicionismo moderno brasileiro que não negros estão cada vez mais cientes e espantados com a quantidade de racistas, homofóbicos, elitistas, fascistas que compõem nossa sociedade e que agiram até agora, até saírem do armário, nas entrelinhas, no bojo de algumas expressões que ninguém nem prestava atenção. O que reclamávamos há anos, o que mata milhares de jovens nas favelas, sempre esteve aqui. Estava escondido nas missas, nos cultos, e talvez, até dirigindo Ongs progressistas.

O país de agora é um país cuja democracia passa por sua maior prova. Jovem, não se imaginou abalável a este ponto e, no entanto, não poderia seguir sem esse referido abalo. Viviane Mosé soprou numa palestra sobre Nietzsche com Amir Haddad: “Não há nada mais parecido com um prédio em construção do que um prédio em demolição”. Por isso, temos que ter coragem de olhar neste espelho. São horas duras. Estudamos Domingos Jorge Velho, o facínora dos negros escravizados e aprendemos na escola a ficar contra o povo. Sem saber. O espelho nos mostra sem máscaras, sem as mentiras sociais que execramos no nosso discurso socialista, coletivista, mas a nossa prática diária ainda é nos moldes da Casa Grande. Não pretendo ser a chata das reuniões, mas convido os amigos não negros a cuidarem e com especial atenção, inclusive psicanalítica, desta pauta.

Nenhum país vive 400 anos num regime escravocrata sem sequelas. Seria um milagre. Quantas vezes eu ouço amigo gente boa falando na minha cara, numa conversa, essa expressão “prato de pedreiro”; sempre numa referência pejorativa, falando mal desse operário trabalhador como um sem modos, sem fineza, sem educação, sem preparo, sem berço. Que não é branco. E quem é que fala mal do prato cheio do operário? É aquele que faz suas festas em mansões oferecendo biscoitoritos. Não é segredo a comemorada fartura das mesas dos pobres em franquíssima diferença à outra. Será que isso não nos diz nada? Quem pensamos que somos quando usamos esta expressão neste contexto: “Gente, aí ele bateu aquele prato de pedreiro…”. Como aqui não há a música da conversa, sugiro apenas uma melodia de sinhá, uma pitada na sinhazice na frase e ela ganhará os ares do que se propõe revelando sua origem, a casagrandisse de seu pensamento e gesto.

Este é o melhor novembro negro que já assisti, porque comemora parlamentares negros num momento em que nunca houve tantos, revela muitos profissionais de Direito e outras profissões elitizadas, e que, graças às inclusões, vêm mudando a prática da Justiça, da saúde, do cinema, e de outras profissões. Essa sociedade brasileira que entrou na universidade vinda da favela pulsa o Brasil novo. Acho que a nossa esquerda precisa tomar um banho dessa nova história, sair do seu quadrado estético de uma ética restrita e se renovar aí. Enquanto houver uma ponta de conservadorismo em cada um de nós, será de tal migalha que o fascismo se alimentará. O mundo se conectou e agora sabemos do cinema negro da Nigéria, Senegal, da África do Sul, do Brasil. Ainda não sabemos quem foi Zumbi, nem o que acontecia em Palmares, mas há uma história brasileira cidadã que precisa ser reinventada. Convido meus amigos não negros a conhecerem a história que desconhecem. É nossa. Tenho gente amiga apavorada porque a ficha está caindo e está percebendo que seu filho mora num condomínio branco, está num colégio branco, na família todos são brancos e os amigos também. Logo, há uma grande possibilidade de estar se criando um filho racista. São duras indagações, meus amores, mas é o momento do nosso dever de casa, talvez, mais doloroso. Sem ele, não passaremos de ano, e nossa esquerda continuará correndo atrás do próprio rabo falando uma coisa e fazendo outra. Não devemos parecer com o que condenamos. Eu acredito no Brasil que seremos depois da prova.