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No Hospital do Corpo Digno

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Eu e minha fragilidade fomos passar um tempo num hospital em Copacabana, onde fui muito bem cuidada. Meu plano me dá um tratamento digno e quem não tem, que é a maioria da população, fica exposto à má vontade dos que decidem as políticas públicas de saúde e com isso também determinam quem deve morrer e quem deve viver. São reflexões de um grão de areia, eu sei. Quando se é internado a gente compreende que é pequeno, quebrável, deu ruim, o “carro” baixou oficina. A eficiência me tranquilizava, no entanto. Em menos de duas horas na emergência, já tinha sido analisada em sangue, urina, tomografia com contraste e o escambau. Diagnosticada com uma diverticulite complicada, o tratamento era antibiótico venoso. Fiquei lá por 10 dias, num andar maravilhoso, onde não se ouvia nenhum ai. Parecia um hotel muito bom. A gente se sente protegido, cercado de saúde, enfermeiras e médicos dedicados, carinhosos. Ai que vontade de que todo mundo tivesse o mesmo tratamento! O imposto que pagamos dá sim para ter um hospital decente e popular. Já tivemos. Quando a gente viaja para a Europa e precisa de um atendimento público, este se parece muito com o privado brasileiro, digno. Meu pensamento divaga nessa contradição embrionária do injusto sistema de justiça em vigor: “Aos pobres nada! É um defeito, que morram nas filas”. Meu caso poderia ser mais grave e precisar de cirurgia urgente. Tenho informações de que uma grande porcentagem da população adulta brasileira sofre de diverticulite e não sabe que uma dieta rica em grãos e sementes pode provocar crises que não admitem esperas.

Me plugaram a um pedestal que traz uma espécie de computador que chamam de bomba, cuja tela luminosa dá informações do paciente e das substâncias que nele estão sendo ministradas. Pois bem, Beth Carvalho quando internada, apelidou essa parafernália de alegoria de mão, porque é ligada pelas mangueirinhas e agulhas no braço, e o pedestal fiquei chamando de esplendor. Como tínhamos que ir ao banheiro juntos, tomar banho, dormir, tudo juntos, achei que já era hora de um nome: Diogo. Sistemático, apitava à qualquer hora da noite ou do dia em que eu dobrasse o braço, mesmo ele sendo meu. Apesar de ser pra minha cura, era difícil. Eu ficava olhando, pensando nas veias abertas de Elisa Lucinda. Que nervoso. Na verdade, o antibiótico é um mal necessário. Vai ter que desinfetar bactérias, tem trabalho para fazer. É guerra, aumenta os leucócitos, Game of thrones.

Da janela vejo a favela. Desculpa, gente, não estou falando mal dos ricos, mas a lição de dignidade, as maiores que já vi na minha vida, vem de pessoas pobres. A escassez conduz a uma vida comunitária de maior partilha, produz um conceito mais altruísta de viver, de sobreviver. Tal dignidade pra mim, identifico como riqueza. Há poucas visitas aqui. Só meu quarto que virou um entra e sai a ponto de exigir uma atitude mais rígida da equipe de amigos e parentes que formaram em torno de mim uma rede afetiva, poderosa.No mais, pelos corredores, era o silêncio. Houve uma senhora que ficava esperando o filho todo domingo. Ele sempre chegava na hora em que ela dormia, pagava às cuidadoras e desaparecia de novo. Nesse hospital, a visita é liberada o dia inteiro até à noite. No hospital público, a visita é só de uma hora e uma só pessoa por vez. É o contrário do que vejo aqui. Seis pessoas se revezam em 10 minutos cada: mãe, filho, avó, tio, marido, amante. Em um, há tempo e não há visita, no outro há visita mas não há tempo. Pelo corredor, onde passeio com o Diogo, cruzo por figuras que parecem mais preocupados com o testamento do que com o doente. Ouvi conversas. Ô, meu deus do céu, o mundo está torto? Quando se vai morrer importa o beijo, importa importar para alguém, importa não ser abandonado num leito. Importa é a fortuna incomensurável do afeto. Por isso, sonho com um hospital digno e igual para todos. Não devia ser privilégio. Que sejam todos bem tratados como fui. Aprendo tanta dignidade na favela que é impossível não concluir que cabe aos pobres a riqueza.