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O sequestro do Estado

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Autocracia, do grego, autokráteia – força própria, poder absoluto.

Estudos econômicos recentes apresentaram realidades paradoxais. Se por um lado no século 20 as condições sócio-sanitárias avançaram, o fosso que separa a extrema pobreza da extrema riqueza aumentou muito, e a crise mundial propagada veio para dar o golpe de misericórdia no abismo. Esta incapacidade crônica de resolver o apartamento entre os que podem comer e os que não gozam do direito de perguntar por que continuam famintos representa bem o malogro da política globalizada como instituição. Mas há um perigo muito maior nessa vergonhosa calamidade. As cinzas têm potencial assustador para gerar lideres totipotentes, os quais, geralmente, ficam à frente de governos cínicos. Facciosos, autorreferentes e boquirrotos, eles formam a nova elite politico-econômica. Não vieram de onde vieram, da pequena burguesia ou da pobreza para mudar nada, apenas ocuparam um lugar que antes não lhes pertencia. O problema é que mimetizaram os valores que antes atacavam ferozmente e se tornaram versões aperfeiçoadas dos antigos algozes. Hoje manipulam os mais pobres exatamente como machistas usam as mulheres. O pobre vai de mão em mão, transformado em objeto, sem acesso a ser player do jogo capitalista, oprimido por impostos e feliz por subsistir na miséria. Seu único préstimo é sustentar a autoilusão de que o regime é feito para eles, e por um deles.

A verdade é que regimes totalitários costumam governar com as instituições financeiras, o grande capital acionário e as elites econômicas. Essa dupla miragem impõe à sociedade inteira um efeito colateral. A verdadeira calamidade é que o favorecimento de governos populistas (distinga-se populismo de governo popular) entorpece a capacidade crítica e permite o cala-boca da maioria na surdina, sem alarde. Pudera, quem pode falar quando são 70 e tantos por cento de aprovação?

Para conseguir tudo isso foi preciso saciar a fome sem prover renda, substituir educação e melhores condições de vida pela subserviência ao paternalismo de Estado, desqualificação da educação superior, e abandono do critério de mérito e esforço para lograr a ascensão sócio-cultural. São rebaixamentos que seduzem. Acabam atingindo a oposição que se viu obrigada a renunciar a seu papel fiscalizador e/ou associar-se comportadamente para compor com o governo: assim nasceu a base alugada.

Pois então que respondam os prezados leitores: Em qual República do mundo uma cúpula partidária inteira é condenada por corrupção ativa, e os mandatários passam incólumes e continuam se elegendo e aos cúmplices, como se a suprema corte estivesse batendo martelos no açougue? Em qual país do mundo o uso da máquina pública é abertamente colocada a serviço de candidatos do regime e não se ouve uma palavra de protesto, uma contestação, um pio? Em qual ação contemporânea, diante de sucessivos escândalos envolvendo sinistros interesses públicos e privados, a situação cresce e a oposição míngua?   

Cautela é vital. A razão mostra que nem todos os políticos podem ser equiparados, e o fenômeno motivador da ação penal 470 é essencialmente pluripartidário. Mas há uma diferença, a fundamental: quem ataca a justiça ou a protege. Os primeiros acham que a lei é uma espécie de guarita, um apêndice governamental, que os cargos de confiança facultam impunidade e, caso derrotados, ainda podem aguardar o indulto. E existem aqueles poucos que sabem que a justiça é a garantia, a única, que nos assegura os direitos individuais, liberdade e equidade. Confundir estes dois tipos e dizer que “são todos iguaizinhos” é embarcar na cortina de fumaça e fazer troça da Constituição, como aliás farão os réus e seus padrinhos a partir de domingo à noite, assim que as urnas forem lacradas. Tudo devidamente acobertado por parcela da comunidade intelectual que agora arma a difamação do único poder atualmente independente da República, o Judiciário.

Como exercício de antecipação, isso nos deveria fazer pensar que, se nada for feito, em qual tipo de ditadura nos transformaremos adiante.    

Ao sequestrar o Estado, esse governo avança lentamente para aplicar os devidos torniquetes contra a liberdade de expressão, como já anunciaram os falcões do partido. O pedido de resgate já não interessa, preferem se apoderar da vítima para sempre. De servidor do povo, o Estado passou a se servir dele para consolidar seu projeto político monológico. O povo somos todos nós, ELES a nova elite, fazendo caixa pelos mais variados motivos. Recomenda-se o recentemente divulgado vídeo com a impressionante entrevista de Hélio Bicudo para entender melhor de quanto se trata.  O mensalão foi apenas um detalhe dessa sofisticada maquinação, que não fica nada a dever às táticas dos regimes mais truculentos e autoritários. A julgar pela inércia, o país ainda não está pronto para ser passado a limpo, teremos que aguardar outro julgamento, o histórico, para saber a distância que estivemos da autocracia.    

O consolo? Passa por um velho princípio da física, a lei a gravidade. Neste mundo todos os corpos são irresistivelmente atraídos ao solo e tendem à queda, se é que não serão derrubados antes!