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É um problema ser a única negra, diz brasileira convidada para conferência da Apple

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Sentada na primeira fila, Ana Carolina da Hora, 24, exibia o mesmo sorriso de todos os outros jovens na foto que registrava a realização de um sonho. Nina, como é chamada, era a única negra entre os 350 jovens de vários países selecionados pela Apple para participar da Conferência WWDC18, que dá a desenvolvedores a oportunidade de aprender a criar novas experiências em plataformas da empresa.

“O maior problema é ser a única em muitos lugares”, resume a estudante de computação, que pela primeira vez viajava para fora do Brasil.

Nina conta que tem cinco mães: a mãe biológica Ana Cláudia, 50, que é professora desempregada; a avó Maria Solange, 79, e três tias. Desde pequena recebe incentivo das matriarcas: “No meu aniversário de 15 anos elas se juntaram para me dar de presente um Arduino [placa de linguagem de programação]”, conta ela, se lembrando do esforço que elas fizeram para comprar o presente.

Na adolescência, Nina se interessou pela ideia de ser cientista, ainda que não tivesse ninguém em quem se espelhar. Com o tempo, o gosto por tecnologia e por educação foi se misturando.

Ela diz que, assim que terminar a faculdade em 2020, pretende seguir na vida acadêmica. Quer voltar para o campus da PUC-Rio, como professora. “Pretendo fazer mestrado e doutorado na Universidade Stanford, no Estados Unidos, e na Nigéria.”

Nina é a terceira mulher negra a se formar em Ciência da Computação da PUC-Rio, desde que o curso surgiu, há dez anos. Fala que os olhares das pessoas a incomodam e que é cansativo ter o tempo todo que se reafirmar, buscando ser a melhor. “São incômodos que, pelo fato de ser negra, não vou deixar de ter; por isso preciso trazer outras meninas.”

Sua história de dificuldades é semelhante à de milhares de jovens da Baixada Fluminense, onde nasceu. “Ter que dormir tarde e acordar muito cedo é uma coisa complicada”, afirma ela, que tem de enfrentar trânsito e tiroteios e gasta a maior parte de seu dinheiro com transporte.

Durante a semana, acorda às 4h, o que permite que tome café com a avó. Leva quase três horas entre sua casa, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, e a PUC, na Gávea, na zona sul carioca. "Basicamente trabalho para me locomover", mas, brinca, "pelo menos desenvolvi a ‘arte’ de me equilibrar no trem lotado e o hábito da leitura nos trajetos”.

Para chegar ao evento da Apple, na Universidade Estadual de San José, na Califórnia, a estudante teve que desenvolver um jogo. Nele, o objetivo da usuária era chegar ao encontro, a partir do uso de geolocalização e da identificação de mulheres programadoras. “As programadoras viam os rostos de outras meninas tristes, quando se encontravam ficavam felizes e formavam uma fila para o WWDC.”

Durante o processo, ela teve o apoio de amigos que traduziram suas cartas de recomendação. Nina chegou a se matricular em um curso do idioma, mas o preço se tornou insustentável. A professora, no entanto, continua lhe dando aulas.

Virou noites aprendendo a linguagem Swift, exigida pela empresa, e finalizando o aplicativo. Concentrada, ouviu do quarto quando a família cantava os parabéns para a mãe. “Sozinha não consigo vencer esses desafios.”

Ricardo Veneris, mentor do Apple Developer Academy PUC-Rio, laboratório onde ela estagia, tem sido uma das pessoas importantes para suas conquistas. Nesse estágio, ela trabalha com pesquisa científica e software para solucionar desafios. Também recebe treinamentos de programação e liderança. “A Nina se propõe a trabalhar a computação de uma forma que a avó dela entenda”, diz Veneris. Atualmente ela cria um aplicativo que utiliza robótica e realidade aumentada.

Para Veneris, a ciência da computação precisa ser explorada como uma nova linguagem essencial para todos e a cientista de Caxias “tem o talento de deixar isso mais próximo da pessoa comum”.

As mulheres são apenas 13,3% dos alunos nos cursos de computação do país, segundo o Censo da Educação Superior de 2016. Dos que estão fazendo algum curso superior relacionado à computação e tecnologia, 15,53% são mulheres, de acordo com o levantamento feito pelo Inep/MEC em 2013.

Segundo pesquisa do Pew Research Center realizada nos Estados Unidos em 2017, 62% dos homens e mulheres das áreas de Ciência, Tecnologia, Matemática e Engenharia afirmaram ter enfrentado discriminação no trabalho por sua raça ou etnia.

“As minhas expectativas são baixas, não sei como vai estar a situação quando eu me formar, depende dos incentivos públicos e privados. A universidade ainda é um privilégio, não sei se vou conseguir seguir carreira no Brasil, mas certamente quero voltar para cá depois”, diz Nina.

Ela acredita que a computação não tem que estar separada de outras áreas: “quem está se formando precisa misturar engenharia com música, física com ciência política.” A partir de uma receita de bolo ela conseguiu explicar para a avó o que é programação, por exemplo.

Nina atualmente preside o ramo estudantil do IEEE (Instituto de Engenheiros Eletrotécnicos e Eletrônicos) na faculdade e se reveza entre o estágio no Apple Developer Academy PUC-Rio e o trabalho no Computação sem caô, projeto criado por ela no qual simplifica questões da ciência da computação no YouTube e no Instagram.

No canal no YouTube, os vídeos curtos vão desde explicações sobre como a Netflix sabe o que você quer assistir a questões ligadas ao fato de trabalhar com computação sendo uma mulher e negra.

Com o apoio que conseguiu da Instituto Serrapilheira, quer transformar o Computação sem caô em uma rede nacional, e até internacional, de pesquisadores e estudantes para outras pessoas aprenderem computação.

Para Sil Bahia, coordenadora da ONG Olabi, Ana Carolina da Hora é alguém que tem construído o futuro. “A gente trabalha para que o futuro seja mais inclusivo, um futuro menos hostil, que tenha a alegria que a Ana tem, a gente olha pro futuro e não consegue vê-lo sem o protagonismo de meninas como ela.”

Veneris, entretanto, lamenta que ela pode vir a ser mais um cerébro brasileiro rumo ao exterior. “Infelizmente, a partir das coisas em que ela vem se aprimorando, ela não deve se encontrar oportunidades no Brasil. Para ela explorar todo o potencial que tem, com certeza deve sair do país.” (Jefferson Barbosa/Folhapress)