Portal Terra
DA REDAÇÃO - Tarde de sábado ensolarada na capital administrativa sul-africana Pretória, e a Hatfield Square aos poucos lota. Na entrada da praça, uma lanchonete de sanduíches baratos vira ponto de encontro de trabalhadores em tempo de descanso, mendigos e maltrapilhos. Na TV, o segundo tempo do amistoso África do Sul x Dinamarca. Todas as 19 pessoas hipnotizadas pelo futebol são negras.
No interior da praça, mesas com ocupação quase máxima em todos os estabelecimentos. Uma em especial chama a atenção. É a única em que o programa televisivo do momento oferece os primeiros minutos do jogo África do Sul x País de Gales. Partida de rúgbi, esporte popularizado no país graças à colonização britânica. Apenas um dos atendentes do bar é negro. Entre os clientes, ninguém pode ser chamado nem de mestiço.
Oficialmente, o apartheid acabou. Mas os 52 anos de segregação constitucional na África do Sul deixaram marcas que demoram - e vão demorar - a serem eliminadas. Por mais que o esforço da integração tenha funcionado, 20 anos - desde 1990 - de programas de conciliação não foram suficientes para diminuir um milésimo do abismo social, cultural e econômico existente entre brancos e negros no país.
Sentado em um bar do futuro desejado, o estudante Pierre Van Wik explica, entre um lance e outro, que a Hatfield Square era um lugar restrito a brancos durante o apartheid. Empolgado por ser testemunha da transformação pela qual o país passou nos últimos anos, o jovem de origem holandesa diz que o país ainda caminha para ser uma unidade. Caminha...
- Mas ainda somos muito diferentes. Com tanto tempo separados, é difícil de uma hora para a outra sermos iguais - diz, exemplificando suas palavras com o jeito de torcer de cada um. "Os negros falam alto, dançam. É difícil ver um branco comemorar desse jeito", completa, antes de se juntar a três jovens brancos e dois negros em uma mesa.
No bar em que se encontra, diferente dos outros dois citados, pessoas que há 20 anos sequer poderiam cruzar o olhar torcem juntas pelos Bafanas Bafanas. O local é ponto de encontro e estudantes da Universidade de Pretória, localizada a poucos metros de distância.
É verdade. Em algumas mesas só há negros. Em outras, só brancos. Mas a integração é evidente e indica o legado mais esperado da Copa do Mundo no país: a de um segundo choque de combate às diferenças raciais pelo esporte.
Durante o apartheid, de 1948 a 1990, existia uma diferenciação clara, pública e defendida de que rúgbi era esporte de branco e futebol de negro. E ponto. O primeiro choque nesta divisão estabelecida ocorreu, em 1995, no segundo ano do mandato de Nelson Mandela. O presidente herdou a organização do torneio e optou por incentivá-lo ao invés de negá-lo, por ser um "esporte de branco".
Em resumo, os Springboks (nome da seleção sul-africana) foram campeões pela primeira vez da competição em uma campanha que mobilizou também os negros. A história é explorada no livro "Jogando com o Inimigo" de John Carlin e ganhou popularidade no último ano com o filme adaptado Invictus, de Clint Eastwood. Naquele time, apenas Chester Williams era negro.
Outras conquistas esportivas, como a conquista do Torneio das Três Nações de Rúgbi, ajudaram a África a Sul a consolidar a integração do esporte. Mas nada comparado à oportunidade que terá de percorrer o caminho inverso nesta Copa do Mundo. Desta vez com o futebol, um esporte mais universal, em destaque.
Repetir os Springboks e vencer a Copa do Mundo pode ser demais para os Bafanas Bafanas, que têm apenas um branco em 2010, Matthew Booth - em 1998, quando participou pela 1ª vez da Copa, também só era um. Mas uma campanha empolgante pode ajudar a África do Sul a evoluir no sentido da integração mais uma vez.
- Quando os Springboks jogaram a Copa do Mundo e ganharam, nosso país deu um grande salto, Mas sinceramente nunca tive visto a África do Sul entusiasmada do jeito que está para esta a Copa. Este entusiasmo não era visto desde que Mandela saiu da prisão - afirmou o atual presidente da África do Sul, Jacob Zuma.
A jovem negra Atli Mosiane concorda. ¿Eu acho que não pode ter diferença entre os esportes porque somos um país. Quando ganhamos jogos, somos nós que ganhamos, seja rúgbi ou seja futebol¿, diz, em um discurso nacionalista que precisa ser colocado em prática pelos dois lados da moeda em questão.