Regina Mendes *, Jornal do Brasil
RIO - A história da transfusão de sangue no Brasil é tão antiga quanto a de nossa República os primeiros registros, feitos por uma tese acadêmica, datam de 1879 e relatam experiências empíricas realizadas à época. Nestes 130 anos, completados em 2009, técnicas, procedimentos e protocolos acompanharam o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, garantindo melhor qualidade ao sangue brasileiro. No entanto, a necessidade de testes mais rígidos para o controle da qualidade deste importante material biológico ainda se faz presente. No cenário atual, em que agentes infecciosos contagiosos como o HIV e o HCV que provocam a Aids e a hepatite C emergem como desafios globais de saúde pública, assegurar a qualidade do sangue e hemoderivados é imprescindível para garantir a segurança de transfusões e a saúde dos pacientes.
A preocupação com a qualidade destes materiais biológicos no Brasil e a fiscalização dos procedimentos envolvidos em transfusões de sangue são relativamente recentes. As primeiras ações datam da década de 1980, quando a Aids começou a aparecer no país, ainda como uma doença desconhecida, assustadora e carregada de estigmas. Naquela época, criar as bases para a triagem do material coletado por bancos de sangue, que até então não contavam com qualquer sistema de controle de qualidade, tornou-se um objetivo primordial.
O episódio de isolamento do vírus da Aids no Brasil, concluído em 1987 por pesquisadores da Fiocruz, é ilustrativo: as amostras clínicas que subsidiaram a realização do projeto foram coletadas de um paciente do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle, infectado pelo HIV por meio de transfusão de sangue realizada após um acidente de trânsito.
A partir da percepção, na década de 80, de que o enfrentamento de doenças como a Aids depende também do rígido controle da qualidade do sangue e hemoderivados, algumas medidas para fiscalização da manipulação e uso destes materiais biológicos foram empreendidas. Um marco legal importante é a aprovação, em 2001, da Lei 10.205, conhecida como Lei do Sangue, que regulamenta a coleta, processamento, estocagem, distribuição e aplicação do sangue, seus componentes e derivados, e proíbe o comércio destes materiais no Brasil.
De acordo com o Ministério da Saúde, o sangue brasileiro apresenta hoje níveis mínimos de contaminação. Se comparada às estatísticas internacionais, porém, a conclusão torna-se outra. O último estudo do Hemocentro de São Paulo revela que o risco de contaminação pelo HIV em transfusões, no Estado, é de 15 casos a cada 1 milhão de procedimentos. Nos Estados Unidos, que adotam outro protocolo para análise da qualidade do sangue, a proporção é de dois casos por 1 milhão de transfusões.
O maior obstáculo à plena qualidade do sangue e hemoderivados é a identificação de agentes infecciosos, como vírus, bactérias e outros micro-organismos patogênicos. Com o teste atualmente utilizado no Brasil, o Elisa (sigla em inglês para Ensaio de Imunoabsorção Ligado à Enzima), muitos destes patógenos só podem ser detectados dias ou meses após a contaminação.
O HIV, por exemplo, requer aproximadamente 22 dias de infecção para ser detectado. O HCV, 70. Esta lacuna temporal para o diagnóstico, chamada janela imunológica, mascara o status sorológico da amostra analisada e pode comprometer a saúde de quem recebe o sangue transfundido. O teste utilizado pelos Estados Unidos, o NAT (sigla em inglês para Teste de Ácido Nucleico), reduz a janela imunológica do HIV para seis a 10 dias, e do HCV para aproximadamente 20 dias.
A atualização permanente dos protocolos que envolvem coleta, processamento, triagem, estocagem, distribuição e aplicação do sangue e hemoderivados é medida necessária, que deve ser adotada como rotina para segurança da saúde pública brasileira.
* Regina Mendes é diretora regional da Associação Brasileira de Bancos de Sangue/RJ