Candido Mendes *, Jornal do Brasil
RIO - O discurso de Obama no Cairo desimpediu de vez as condições de um entendimento universal para uma humanidade que queira escapar à civilização do medo. E não estamos apenas na força das palavras, mas naquilo em que o verbo, por si só, é a primeira ação para o desemperro do mundo encravado na desconfiança, e no estereótipo arraigado do que sejam os outros, ou as culturas que hoje se confrontam.
Não se trata mais de retorquir ao pesadelo do governo Bush e ao cinturão de violência baixado sobre o mundo, no resguardo do país hegemônico ferido pelo 11 de setembro. Há, sim, esse resgate único do próprio cerne da cultura americana, desse pluralismo essencial de convivência. É o que Obama explicita em todo o seu recado biográfico, do cristão negro de origem islâmica, que repete o seu nome Hussein e o abraço em que se abre o novo século. E não é o repúdio apenas ao fundamentalismo exasperado em que o Salão Oval anterior se via como o guardião peremptório de um Ocidente cristão.
A visão é prospectiva, na tarefa do desarme de uma rejeição mundial aos Estados Unidos, ao reconhecer, desde a Guerra Fria, o intervencionismo da CIA, e o desmonte do primeiro governo nacionalista do Irã, derrubando Mosadeqh, que nacionalizou a exploração do petróleo, riqueza crítica do país. A largueza do novo propósito não deixa dúvidas sobre o acatar-se o direito de Teerã à pacífica e indiscutível exploração das riquezas nucleares, e o recado peremptório de que as tolerâncias históricas de Washington com Israel passam à cobrança da efetiva e final criação de um Estado palestino.
O anúncio vai ainda ao maior alcance, enquanto reconhece nas sublevações do Afeganistão, talvez o mesmo veio do nacionalismo de Mosadeqh e, quiçá, o movimento talibã, como dissociado do extremismo da Al-Qaeda. Intenta o presidente americano sempre dentro da nova convivência uma superação de velhos colonialismos econômicos internacionais, reacendidos após a ocupação branca de Kabul.
O discurso de Obama não tem, após a Segunda Guerra Mundial, equivalente, na força da frase do recado, senão em Churchill e De Gaulle. Mas a cadência é a de um aguilhão sobre os fatos, na surpresa de sua amplitude e do repto do recado. Desbarata o sarcasmo ou o cinismo fácil dos experts de uma realpolitik, tão só preocupados com o perde-e-ganha de um momento, a que imolam toda consideração mais ambiciosa de uma estratégia para o nosso tempo.
O longo prazo aí está delineado, vencendo uma primeira visão hegemônica da ordem mundial. E vem de par com a amplitude também em que se supera, dentro do seu modelo econômico, a ordem capitalista estrita de que se fez a sua prosperidade. É como um longo e inesperado amadurecimento das virtudes do primeiro Estado-nação moderno, que se pode lançar à globalização, efetivamente plural e compartilhada. A última escolha presidencial americana começa a se dar conta do quanto, para além do simples voto, foi uma opção. E na história dos impérios, passa-se à de um poder sem muros. O de Berlim foi derrubado agora, e de vez, no Cairo.
* Candido Mendes é cientista político