CADERNOB
'Rádio Acordar o Tempo': um saudosismo contemporâneo
Por CAIO BUCKER, [email protected]
Publicado em 08/06/2021 às 10:14
Alterado em 08/06/2021 às 12:33
A ideia seria estrear uma peça, com a ansiedade do teatro lotado, boas críticas e uma cervejinha comemorativa ao final das apresentações. Mas com o isolamento social, mudança nos planos e adaptações de todo o mundo. Partindo do desejo dos autores e diretores, Caio Riscado e Maria Isabel Iorio, de escrever sobre a solidão, sobre suas formas na contemporaneidade e os dispositivos encontrados para torná-la pública ou compartilhada, “Rádio Acordar o Tempo” estreia sábado (12) no canal do youtube do Sesc Rio. O projeto, que nasceu para o teatro, foi adaptado especialmente para o Sesc, ganhando o formato de websérie para alcançar o público. O Jornal do Brasil teve acesso exclusivo ao primeiro episódio.
A atriz e cantora Luísa Vianna encarna a carismática personagem Ernúbia, que para fugir da tristeza e da loucura pandêmica, resgata os tempos áureos em que trabalhava como cantora de rádio para criar seu próprio programa, com transmissão on-line da sala de sua casa. Em cinco episódios, fala sobre amor e solidão, cantando canções da Era de Ouro do rádio brasileiro, e propondo um encontro entre a delicadeza, o humor e a emoção. Para os autores e diretores, ao chegar no conceito de uma solidão compartilhada com a influência da pandemia, surge o pensamento nas pessoas mais velhas e em quem não tem uma inserção digital tão grande. “Elas poderiam estar isoladas dentro do seu próprio isolamento, ou seja, ainda mais isoladas. É no contexto de compartilhamento dessa solidão que surge a Ernúbia, e o desejo dela se mostrar sozinha, mas ao mesmo tempo com testemunhas.”
A discussão acerca da solidão é feita a partir do trabalho com a memória. Caio e Maria Isabel contam que a personagem não olha pro passado com saudosismo, pelo contrário. “Ela está sempre tentando atualizar seu pensamento no presente, buscando inspiração naquilo que já viveu. Assim, só conseguiremos produzir novas possibilidades de futuro a partir do nosso passado social. ”Como uma forma de homenagear mulheres que fizeram e fazem parte de nossa vida, ocupando o lugar de mães, tias, avós, e até de artistas da velha guarda, surge a ambiência das cantoras de rádio, que sempre foram referência vocal para Luísa Vianna. A atriz, que canta desde sempre, tem inspirações também na família, com a mãe, cantora lírica, e um avô seresteiro. Quando criança, ouvia e se emocionava com as damas da época, como Ângela Maria. “Esses clássicos sempre estiveram presentes na minha playlist e no meu banho. São referências muito fortes pra mim, e isso está marcado em tudo que eu faço. A vontade de fazer um trabalho nesse tema é recorrente, até que o Caio e a Maria Isabel me chegaram com a ideia da Ernúbia, que é essa apresentadora de uma rádio fantasma, presente e possível em muitos tempos. A vontade era falar de solidão e amor, e ela acabou virando uma comunicadora, uma ampliadora desses sentimentos e dessas partes queridas da nossa cultura.”
Sobre adaptar o espetáculo para uma série, os autores falam que foi relativamente tranquilo no sentido temático, mas muito trabalhoso no sentido da metodologia. “Para o espetáculo, tínhamos a ideia de uma temporalidade e assuntos mais atravessados. Na série, elencamos grandes temas e repartimos por episódios, para que cada um tenha um tema central. Pensamos num diálogo do texto com a música, mas esta não como ilustração, e sim como uma espécie de complemento. A música não ilustra o discurso; ela está com o discurso.”
Atriz e cantora de muitos recursos, Luísa Vianna vive Ernúbia de forma leve e divertida. “Ela é uma alegoria, um corpo vivo com muitas idades possíveis, assim como nós. Às vezes é uma senhora de sotaque e expressões antigas. Mas às vezes parece uma criança, ri e descobre os próprios sentimentos, se pega descobrindo coisas novas e se deliciando com o que não tinha pensado antes. Ela é de outro tempo, mas está viva neste tempo também.” O cuidado de não cair no estereótipo de personagens idosos, com maquiagens e trejeitos exagerados, gera uma naturalidade que aproxima ainda mais o espectador da história. “Essa construção da Ernúbia é muito latente em mim. Tenho referências como Bibi Ferreira, Marília Pêra, Eva Wilma, Dercy, Dalva, Dolores Duran e Carmen Miranda. Eu me espelho, admiro e sigo, e tento ecoar o trabalho. Faço questão que a gente não se esqueça, e que mantenha o orgulho e admiração por estas mulheres que abriram tantas portas, as famosas e as não famosas, que são uma parte muito bonita da cultura brasileira.”
A série propõe ao público olhar para o próprio sofrimento e tentar achar esperança dentro de si, rir da própria vida, exorcizar as dores pelo riso e pelas lágrimas, para seguir em frente. “A situação hoje é muito ruim, muito triste, e não é sobre respirar, em todos os sentidos, não é sobre negar uma situação, não é sobre concordar nem estar neutro. É justamente o contrário: é sobre estar forte para fazer o que é preciso. É se manter vivo”, comenta Luísa.
Num momento onde o riso, a reflexão e a emoção se tornam indispensáveis, o trabalho proporciona um saudosismo gostoso e contemporâneo de forma divertida. Ela, que no início da pandemia esteve trancada num quarto, quase perdeu a esperança, até que teve um estalo: “Qual a diferença entre estar deprimida e triste, dentro de um quarto sozinha, e estar bem e feliz, dentro de um quarto sozinha?” E fez uma escolha, para ela e para a sociedade. “Bem melhor estar viva e com amor pra dar, com voz audível para falar a favor da cultura, da arte, para produzir e não desistir. Por mais difícil que seja, essa é a minha função como artista.”
Em tempos em que a arte e a cultura são vistas cada vez mais de forma supérflua, projetos como esse inspiram com sensibilidade. A saudade de subir ao palco, sentir o cheiro do teatro e ver a plateia calorosa vai continuar. Mas, enquanto isso, que os artistas criem novidades e que o público on-line se faça presente, reflita e se divirta. “Vocês estão aí? Porque eu estou aqui, vou dar o primeiro passo com esse trabalho on-line. Se tiver alguém que sinta falta de encontrar seu povo e refletir sobre a sua vida em conjunto, que sinta falta de arte e de teatro, é só vir me encontrar”, conclui.
SERVIÇO: Estreia sábado, 12 de Junho / Temporada até 12 de Julho, com todos os episódios liberados no canal do youtube do SESC Rio.