Aclamado nos 15 festivais internacionais por que passou ao longo de um ano, na fila de espera por espaço em circuito, “Em trânsito”, de Christian Petzold, um drama sobre fantasmas nazistas, vem sendo definido como um estandarte para a atual fase de excelência do cinema alemão, que saiu da última Berlinale, há uma semana, com dois Ursos de Prata. Na competição berlinense, a cineasta Nora Fingscheidt ganhou o Troféu Alfred Bauer (dado a novas experiências de linguagem) por “System crasher” e sua colega Angela Schanelec ficou com o prêmio de melhor direção por “I was home, but...”. Muito da ebulição criativa nas telas germânicas é atribuído ao sucesso mundial de “Toni Erdmann”, de Maren Ade, premiado pela crítica, em Cannes, em 2016, e indicado ao Oscar. Mas, antes de Maren brilhar, era Petzold quem mantinha ativo e vivo o brilho autoral da pátria de onde vieram Fassbinder, Herzog e Wim Wenders. E chegou a hora dos americanos o aplaudirem: seu novo filme estreia lá nesta sexta. No Brasil, espera-se um lançamento este semestre.
“A identidade vai além do território geográfico. A geografia mais significativa está na língua, pois é nessa que tecemos a identidade e o mistério”, disse Petzold ao JB, na projeção de “Em trânsito” no Festival de Berlim.
Cada diálogo trocado em “Transit” (título original de “Em trânsito”) soa como se fizesse referência à II Guerra Mundial e ao jugo nazista sobre a Europa. Temos como protagonista um dissidente da política germânica, Georg (o ótimo Franz Rogowski), que deseja entrar na França, antes de o país ser ocupado, e, de lá, partir para o México. “Existe um movimento de diáspora, de autopreservação, que dialoga com as imigrações clandestinas de hoje, que geram os bolsões de refugiados que, em muitos países, são tratados com desigualdade”, alerta o cineasta de 58 anos.
No enredo filmado por Petzold, a partir do romance de Anna Seghers, um manuscrito de um autor morto cai nas mãos de Georg, o que faz com ele seja confundido com um escritor. Porém, todos os locais por onde Georg passa não guardam referências visuais dos tempos do Holocausto: estamos na Marselha de hoje, com roupas e armas atuais, retratando refugiados do Oriente Médio como os que hoje se amontoam em grandes centros urbanos das metrópoles europeias. “As certezas históricas são um convite a um erro quando dissociadas dos componentes humanos”, disse o cineasta.
O objetivo de Petzold, aclamado como o maior cineasta da Alemanha entre os realizadores revelados nos últimos 20 anos, graças a sucessos como “Bárbara”, de 2012, e “Phoenix”, de 2014 – é mostrar que a opressão dos tempos hitleristas, mesmo com outras motivações, não é diferente da violência sob a qual os imigrantes ilegais vivem em território berlinense. “A ideia aqui é misturar o manuscrito encontrado por Georg, com os dois tempos históricos da trama: um encenado; o outro, retratado. Há fato e fábula juntos, risco e conforto. E existe uma narração literária que dá ritmo à narrativa. No cinema autoral, palavra vira melodia. Basta ver as cenas de um clássico como “Jules et Jim”, de Truffaut, para sentir a força das palavras e o que elas podem representar de potência à imagem”, disse Petzold, hoje envolvido com a série de TV “Police 110”, um cult na Alemanha.
“Em trânsito” retrata cidades como Marselha, por exemplo, com um exotismo que descaracteriza a bela paisagem do local. As sequências de perseguição aos refugiados compensam a perda de ritmo das cenas de diálogo com doses fartas de adrenalina e de denúncia social. O longa se impõe na tela como uma investigação de linguagem sobre a perenidade do Mal na forma da exclusão. “Cinema é parceria e comunhão criativa. Quando inicio um filme, confio à minha montadora habitual, Bettina Böhler, a tarefa de me dar a linha narrativa que eu devo seguir. E é ela que demarca meu ritmo”, disse Petzold. “Filmo com uma ideia de personagens e com algumas inquietações. Mas é Bettina quem encontra o tom, na ilha de edição. Tom que um parceiro como Franz Rogowski escava de sua alma”.