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Pag. 70 - O ano de 2010 foi o marco histórico da segurança no Rio? - Retrospectiva 2010

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A ocupação só será um marco histórico se resvalar para a dimensão social e não se restringir à força João Trajano Sento-Sé CIENTISTA POLÍTICO DO LABORATÓRIO DE ANÁLISE DA VIOLÊNCIA UERJ N o encerramento da primeira década do século XXI, o Rio de Janeiro, mais uma vez, viveu perigosamente. A ocupação do complexo do Alemão, por uma coalizão coordenando as polícias fluminenses com efetivos das Forças Armadas, mobilizou o país e repercutiu internacionalmente. O discurso oficial foi abertamente ufanista, acentuando a retomada pelo Estado de um território tido por inexpugnável e quase que irremediavelmente controlado pelo crime organizado. As mídias acompanharam o processo, reforçando o tom oficial e anunciando a fundação de uma nova era na segurança pública do estado.

Formadores de opinião e especialistas não agiram de forma diferente. Às metáforas antigas, como a da guerra civil, a do poder paralelo do tráfico, e outras do gênero, somaram-se novas, tão desacertadas quanto. A descabida identificação com o terrorismo foi a pior e mais recorrente de todas.

Após o estupor inicial, que deixou evidente a fragilidade do sistema de inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Rio, as autoridades reagiram como os criminosos: lançaram mão do espetáculo e da ostentação da força. Acabou sendo secundário especular se o vandalismo que tomou as ruas teria sido comandado diretamente do complexo do Alemão. O fato é que ali era um dos redutos mais fortemente blindados de uma facção do tráfico de drogas no Rio.

Atacar o coração do Comando Vermelho era a opção possível para o Estado responder na mesma moeda. E assim foi feito.

Até aqui, nenhuma novidade.

Faz tempo que a segurança pública no estado é conduzida dessa forma. Tomar o complexo do Alemão foi uma aposta arriscada. Se os confrontos esperados tivessem ocorrido, haveria um banho de sangue sem precedentes. Morreriam soldados do tráfico, militares das Forças Armadas, policiais e moradores po bres da região, vítimas contumazes de todos os demais envolvidos no imbróglio. Não foi isso o que se deu.

Em primeiro lugar, a resistência do tráfico foi quase nula. Suas lideranças escaparam a tempo, deixando nas comunidades figuras sem poder de comando. Melhor assim.

Em segundo lugar, a Secretaria de Segurança Pública agiu com prudência e responsabilidade, preocupando-se em preservar a população local e evitando um confronto de grandes proporções. O comando operacional demonstrou a mesma virtude, sem prejuízo da firmeza e da enorme capacidade de comunicação, reveladas, também de maneira inédita, a cada passo da operação. Ponto para as autoridades fluminenses.

Finalmente, há indícios de que a ocupação será perene e não se restringirá a sua dimensão armada. Caso isso ocorra, teremos, sim, um grande marco fundador. A conferir.

O discurso oficial tentou, e aparentemente conseguiu, transformar retoricamente suas limitações em virtudes. Atribuiu uma tragédia pública ao acerto de suas políticas de segurança. Não é aconselhável permanecermos presas desse ardil. Não há razão para ufanismos ou celebrações. A nova crise na segurança pública do Rio tem a ver com antigas fragilidades do aparato estatal. Sua baixíssima capacidade de investigação e de inteligência e a corrupção que compromete as corporações policiais são as únicas armas realmente eficazes do chamado crime organizado.

Os temidos soldados do tráfico não passam de um bando de maltrapilhos miseráveis, portando armas que mal sabem manusear, como imagens televisivas deixaram evidente.

De positivo, temos a desconstrução do mito do crime organizado e fortemente equipado, bem como a afirmação de quadros qualificados à frente dos órgãos de segurança pública.

O pulo do gato, porém, está reservado para o futuro. As violações e abusos cometidos por policiais contra moradores serão de fato apurados e, quando confirmados, punidos segundo o que está previsto na lei? As falhas do aparato de segurança serão objeto de investimentos futuros? Haverá um trabalho que impeça que o deslocamento das lideranças do tráfico para outras áreas da cidade e do estado leve o flagelo do despotismo para outras comunidades? O espírito republicano, acionado performaticamente no curso da ocupação, será efetivamente estendido aos moradores de todas as áreas esquecidas do estado de forma permanente e concreta? Caso todas as respostas sejam afirmativas, os dias de tensão e medo terão valido a pena, e teremos presenciado, no final de 2010, um acontecimento histórico. Do contrário, tudo não terá passado de uma pantomima, à espera de sua próxima reiteração.