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Pag. 110 - A derrocada das fronteiras artísticas - Retrospectiva 2010

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A o que tudo indica, não interessa mais manter de pé as fronteiras artísticas. Não são poucos os trabalhos que vêm investindo na derrocada delas. A insistência na definição de características próprias a cada manifestação (teatro, cinema, literatura, música, artes visuais etc) passou a ser vista como uma medida reducionista, limitadora diante do campo de possibilidades que se descortinam a partir do que talvez se possa chamar de uma contaminação criativa.

Encenações não se contentam mais em se afirmar “apenas” como teatro. Promovem uma fusão de linguagens através da mescla entre procedimentos diversos. Se Aderbal Freire-Filho tem apostado, desde o fim da década de 80, na vertente dos romances-em-cena, que consiste na encenação de livros integrais, sem uma adaptação da gramática literária para a teatral, nos últimos tempos várias encenações despontaram norteadas por um elo direto com as artes plásticas.

Em Sonhos para vestir , monólogo de Sara Antunes dirigido por Vera Holtz, o cenário-instalação de Analu Prestes se impõe como elemento fundamental, potencializando, por meio de sua qualidade artesanal, o caráter pessoal da homenagem ao pai, feita pela atriz. Na montagem de Guilherme Leme para Rock Antygona , apropriação da tragédia de Sófocles, Aurora dos Campos concebeu um chão de pedras, tortuoso percurso atravessado pela protagonista, que revelava conexão com as artes plásticas.

O caráter de instalação tende a transformar a relação proposta ao público, que, diversas vezes, transita pelo espetáculo como se estivesse numa exposição, onde pode permanecer durante o tempo que quiser diante de uma obra ou eleger o foco de seu olhar. Parece haver, inclusive, uma tendência de abolir a divisão entre espaço da obra e do público. Em determinadas montagens, a apresentação se transfere para a plateia. Exemplo: Arrufos , trabalho do Grupo XIX, mostrado na cena carioca. Ou, de maneira diferente, Festa de separação , dirigida pelo mesmo Luiz Fer nando Marques, mas fora do XIX, na qual a participação da plateia era amplamente requisitada, numa proposta que nasceu do desejo de um casal de transformar o seu processo de separação num espetáculo.

A fronteira tradicional entre ator e personagem também vem sendo questionada. Tornou-se comum os atores assumirem seus próprios nomes e não o de personagens. Entretanto, quase que como uma espécie de defesa (uma provável evidência de pudor), os atores falam na primeira pessoa preocupados, porém, em esclarecer imediatamente que o que dizem não só pode não ser como muito possivelmente não está diretamente relacionado às suas próprias vidas. Eles se apressam em afirmar que há uma boa chance de se tratar de uma apropriação de depoimentos dos espectadores, utilizados com frequência como material criativo. Em Nao temnemnome , os integrantes da Cia. das Inutilezas propuseram entrevistar cada espectador para, possivelmente, aproveitar como matéria-prima das apresentações.

No cinema, o espectador se depara com a separação tênue entre ficção e documentário, tornando-se, às vezes, complicado fazer uma classificação, tarefa mais fácil em décadas passadas.

Fato que chamou a atenção na programação do último Festival de Brasília. Em O céu sobre os ombros , o cineasta Sérgio Borges conseguiu uma proeza ao expor fragmentos importantes das vidas de pessoas bem diferentes umas das outras: mostrá-las desarmadas diante de uma câmera bastante próxima de seus corpos, ainda que não invasiva.

Em Amor? , João Jardim revelou a qualidade de apropriação empreendida por atores famosos acerca de vivências que não são suas. E em Tra n s e u n t e , Eryk Rocha orquestrou uma minuciosa partitura sonora do Rio de Janeiro ao registrar a jornada até certo ponto solitária de seu personagem.