O tratamento que tem sido dado ao salário mínimo reveste-se de uma aura técnica, pretensamente neutra, com rebuscado vocabulário economicista, mas, ao fim e ao cabo, nada mais revela do que uma escolha política. É evidente que as tecnicalidades importam à política do ponto de vista das decisões imediatas, mas reduzir as discussões sobre o salário mínimo exclusivamente a esse imediatismo é extremamente danoso – até mesmo porque o salário mínimo é fundamental para que possamos sonhar com um país menos injusto.
Acaba de ser anunciado que o salário mínimo no Brasil deverá ser da ordem de R$ 780 em 2015, um aumento de 7,7% em relação aosatuais R$ 724. Esse será o último reajuste que obedece à fórmula, definida em 2007, de recuperar a inflação do ano anterior e adicionar o crescimento do PIB verificado dois anos antes. Em 2015, essa regra deixará de vigorar.
É necessário discutir o assunto desde já, para não corrermos o risco de um retrocesso.
Nos últimos tempos, dedos acusatórios em riste têm apontado para os pretensos problemasderivados do aumento do salário mínimo verificado no Brasil no último decênio. Esse crescimento éindicado por algunsanalistas como o grande responsável pela inflação, pela perda de competitividade das empresas nacionais e pela deterioração das contas públicas.Nessa linha, defendemque o salário mínimo nunca cresça acima da produtividadee que cada vez menos benefícios sejam vinculados ao salário mínimo.
De fato, não há como negar que o salário, sob a ótica dos empregadores (empresários e setor público) é um custo e que, como tal, sua elevação gera aumento de despesas. É igualmente óbvio, porém, que para os trabalhadores, esse mesmo salário deixa de ser um custo e passa a ser uma renda. Privilegiaremos aqui a ótica do trabalhador, olhando para essa renda, seus beneficiários, sua dinâmica recente eseus propósitos.
Para começar a análise, é importante contabilizar os beneficiários de uma política de valorização do salário mínimo. 48 milhões de pessoas têm seus rendimentos diretamente vinculados a esse salário. Considerando que milhões de outros trabalhadores têm sua renda de alguma forma referenciada no salário mínimo, esse número se amplia. E se pensarmos nas famílias desses trabalhadores, esse contingente se multiplica. A informalidade é ainda assustadoramente grande no mercado de trabalho brasileiro e a reversão desse quadro ampliaráainda mais os benefícios da política de valorização do salário mínimo para o conjunto da população brasileira.
Prosseguindo na análise, se o salário mínimo cresceu tanto nos últimos anos, é razoável supor que ele tenha atingido um nível adequado? Depende do que se considera como um nível adequado. O salário mínimo é definido na Constituição Federal como aquele que deveria garantir um mínimo de decência na vida de um trabalhador e de sua família. E o termo “mínimo” é usado aqui em seu sentido literal: comer, morar, se vestir, se locomover, dar estudo para os filhos. A verdade inquestionável é que o salário mínimo brasileiro ainda não possibilita esse mínimo de decência.
Continuando, é importante levantar um pouco o campo de visão, olhando para um horizonte temporal mais esclarecedor do que aquele que tem sido evocado. Com essa perspectivamais ampla, mostrada pelo gráfico abaixo, percebemos que o salário mínimo em termos reais (ou seja, descontando a inflação e olhando apenas para o seu poder de compra) caiu quase que ininterruptamente durante toda a década de oitenta e metade da década de noventa. Em 1995, quando começou a reagir, o salário mínimo real brasileiro valia menos da metade do que valera no início dos anos oitenta.A reação começou com o fim do período hiperinflacionário e foi acentuada no governo Lula, mas o salário mínimo retornou a um patamar comparável ao do início dos anos oitenta apenas em 2009! Seguindo com a comparação histórica, percebemos que o salário mínimo de hoje é ainda inferior ao vigente em abril de 1964, momento do golpe militar. Ou seja, depois do longo período de destruição econômico-social promovidapelos governos militares, ainda não conseguimos sequer retornar ao patamar pré-golpe.
Diante de tudo isso, convido o leitor a pensar: será que realmente não há mais espaço para a ampliação do salário mínimo no Brasil?Será que o crescimento recente deve ser refreado?
Mesmo para os pagadores desse salário mínimo,podemos enxergar benefícios com os reajustes, quando olhamos sob uma perspectiva dinâmica. Se o efeito inicial da elevação do salário mínimo nada mais é do que um aumento de custos, em um segundo momento significa crescimento da massa de rendimentos da economia, que se reverterá em aumento de demanda para o empresariado e em aumento de arrecadação tributária para o setor público.
E, ainda que esses benefícios não compensem totalmente as perdas para os pagadores, isso não deve ser taxativamente encarado como provadefinitiva da inviabilidade do processo. Afinal, a economia é política. Pelos dados mais recentes (2009), a participação dos salários no PIB brasileiro é de 34,4%, enquanto a dos lucros (excedente operacional bruto) é de 33,2%. Tendo em vista que o número de trabalhadores é imensamente maior que o de empresários, se explicita a aberrante desigualdade da distribuição funcional da renda no Brasil, revelando, mais do que a possibilidade, a necessidade de uma elevação da massa salarial em relação à massa de lucros. Do ponto de vista do setor público, se o seu orçamento está apertado pela elevação do salário mínimo, nada impede, no médio prazo, uma realocação de recursos que priorize esse tipo de gasto ou mesmo uma reforma tributária que reforce o caráter redistributivo da relação taxação/benefícios. São medidas impossíveis para o curto prazo, mas que nem por isso devem ser eliminadas de uma agenda estratégica para o país.
Sendo bem franco, devolver ao trabalhador uma parte da riqueza que ele próprio cria, com sua força de trabalho, permitindo-lhe ter uma vida decente,isso sim é o mínimo. E qualquer discussão que não parta dessa premissa revela uma escolha política, com consequências sociais nefastas.
* Bruno De Conti é professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon/Unicamp)