BEM VIVER

O perdão nos tempos do cólera

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Por VICTOR MAIA

Publicado em 25/03/2021 às 14:00

Alterado em 25/03/2021 às 14:02

Victor Maia Foto: divulgação

São tempos de conflito e exacerbação. Ofensas, brigas, crimes, polarizações, excessos, são inúmeros os modos como nos destruímos como sociedade e criamos impasses de difícil solução. Somos ora vítimas, ora protagonistas de malfeitos que, de algum modo, suspendem o tempo, impedem que o curso ordinário das coisas continue. É aí que se estabelecem as cenas contemporâneas de perdão.

Diante das feridas e dos conflitos que emergem dos rasgos de nosso tecido social e familiar, o perdão aparece como a possibilidade de um novo começo. Um fantasma que retorna, um passado que não passa, somos assombrados pelas feridas infligidas a nós e por aquelas que, porventura, causamos aos outros.

Mas o perdão não acontece sem desafios e paradoxos. Aquele que perdoa exige de seus carrascos que este confesse a sua falta, que se arrependa, que se transforme e que, finalmente, peça perdão à vítima. A confissão serve aí para exteriorizar uma nova consciência, agora arrependida e consciente de sua culpa. Pelo reconhecimento da falta e pelo arrependimento, o ofensor manifesta seu desprendimento do mal cometido, ele se desvincula do mal feito.

Teológica em demasia toda essa história de perdão, dirão alguns. Embora dotado de uma forte herança religiosa, o perdão é por vezes a única possibilidade de conciliação entre nossas subjetividades. O perdão suspende o tempo do ódio, suspende um tempo de vinganças, permitindo-nos certo renascimento psíquico, certo apaziguamento.

Perdoar a si mesmo talvez seja até mais difícil do que perdoar aos outros. O filósofo lituano Emmanuel Levinas certa vez disse que “os males que devem cicatrizar na alma sem o socorro do outro são os males mais profundos”. Mas perdoar a si e aos outros talvez sejam partes de um mesmo e único movimento. Quem não consegue perdoar a si muito provavelmente não terá capacidade de perdoar aos outros.

Perdoar implica uma incansável relação com o outro, como um imperativo de justiça. A cena instaurada pelo perdão é a cena de um novo início, a ser vivida como uma possibilidade libertadora de continuarmos. É preciso que o curso ordinário da existência se movimente novamente, é preciso que, pela reconciliação, encontremos novas maneiras de “ser”. É preciso pedir perdão. E perdoar.

*Psicanalista e filósofo, com pós-doutorado pela UFRJ