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A distopia das fake news

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No início do ano, em entrevista a David Letterman, o ex-presidente Barack Obama, citando o ex-senador democrata Daniel Patrick Moynihan, alertou: “Qualquer um pode ter sua própria opinião, mas não seus próprios fatos”. O bom jornalismo, o jornalismo responsável, jamais presume fatos, muito ao contrário, nada publica sem antes duvidar e conferir.


Nunca, em décadas mais recentes, um jornalismo profissional, de alta qualidade e responsável, foi tão necessário para o equilíbrio da democracia. Não por acaso, com o objetivo de identificar e enfraquecer sofisticadas técnicas de manipulação e disseminação de fake news durante o período eleitoral, projetos profissionais de checagem de fatos começam a ser anunciados, reunindo times multidisciplinares de jornalistas qualificados e treinados na identificação e validação de conteúdos suspeitos, atividades que tendem a crescer em importância nos próximos anos, com a evolução das “tecnologias da desinformação”.
O panorama atual das mídias sociais oferece às pessoas meios de ouvir apenas o que desejam ouvir.

Quando confrontadas com ideias que desafiam suas crenças, podem se tornar apáticas ou reagirem com indignação, acusações de censura ou infâmia e aos gritos de fake news! Essas tendências foram previstas, há muito tempo, na literatura distópica de George Orwell (“1984”) e Aldous Huxley (“Admirável Mundo Novo”), sempre lembrados, e de Ray Bradbury (“Fahrenheit 451”).


O romance de Bradbury retrata um futuro sombrio em que bombeiros queimam livros para silenciar “ideias preocupantes”. A história é interpretada como um ataque à censura do governo, afinal, foi escrita durante a patrulha anticomunista do senador republicano Joseph McCarthy. No entanto é na direção da própria sociedade, responsável maior pelo cenário distópico do livro, que Bradbury aponta seu dedo acusatório.


O autor imagina um futuro em que a tecnologia “pacifica e anestesia” os seres humanos com entretenimento insensato e uma avalanche de trivialidades sem fim. Para acabar com a ansiedade, as pessoas se escondem da realidade e desejam apenas perpetuar uma existência de prazer e conforto. Elas se autocensuram, desenvolvendo uma intolerância por verdades desagradáveis, ideias politicamente incorretas e opiniões que as tirem de suas zonas de conforto, se concentrando assim em informações menores: “Livros abreviados. Condensações. Resumos. Tabloides. Tudo subordinado às ‘gags’, ao final emocionante”.


Ainda não estamos “queimando livros” como os bombeiros da trama de Bradbury, mas nos aproximamos perigosamente do cenário geral previsto pelo autor. Consumimos informações rasas em demasia, esquecemos o que consumimos e acabamos por consumir novamente, sem reflexão, “resumos de resumos de resumos”. Pouco importa a qualidade factual da informação que se consome. Nossas mentes preguiçosas “bebem cada vez menos” na fonte do pensamento crítico.


Na crise política diante das “democracias de alta tecnologia”, estaremos no meio de uma infoguerra total, vulneráveis às mais sofisticadas infotáticas preconizadas há décadas, que colocarão em xeque alguns dos nossos pressupostos democráticos mais básicos. O perigo real e imediato da manipulação de informações não pode ser menosprezado. Confusos e desconfiados, a tendência é que os cidadãos se refugiem ainda mais em suas “bolhas” aparentemente seguras, isolados em relação a qualquer tipo de debate público. Algo que por si só impingiria uma derrota acachapante à própria democracia.

* Escritor e jornalista

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