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O Brasil, três anos depois

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Três anos atrás organizei para o Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento a obra “Brasil, sociedade em movimento” (ed. Paz e Terra). A crise alastrava e, embora aquilo que iria acontecer superasse tudo o que poderíamos imaginar, era claro que se entrava numa nova fase do processo político do país. Reunimos, então, um amplo espectro do pensamento progressista no Brasil para montar um diagnóstico e propor saídas.


Não há necessidade de voltar ao que se passou nos anos seguintes. O governo Temer, e seus aliados, puseram em execução uma pauta política sem aprovação das urnas, nomeadamente a PEC do Teto de Gastos, uma medida de incalculáveis e funestas consequências. A essas iniciativas somou-se uma atividade judiciária que revelou a gravidade da corrupção no Brasil, porém escorregando amiúde na ortodoxia legal: a Justiça não acabou com a corrupção e é provável que saia dessa investida mais fragilizada, ela mesma, do que a própria corrupção.


Com as eleições presidenciais, tudo isso passa para segundo plano, é hora de decretar que chegou o fim do recreio, de passar a coisas sérias, a propostas que assegurem o futuro do país e o bem-estar do conjunto do povo brasileiro.


Qualquer um que siga a imprensa internacional, como é o meu caso desde que retornei a Lisboa, sabe que nesses três anos muita coisa mudou no mundo. A problemática do aquecimento global e do acesso à água, além das migrações em massa, adquiriram uma influência predominante, e remetem a duas questões históricas da sociedade brasileira, a dos direitos humanos e da desigualdade de renda, e a da Amazônia, nunca encaradas com o rigor necessário.


É um fato indesmentível que será necessária muita legitimidade institucional para que o Brasil preserve a soberania sobre a Amazônia, que é essencial à sobrevivência da humanidade, dado o manancial de recursos que ela encerra. E essa legitimidade só poderá ser alcançada de novo se o Brasil tiver um Executivo forte e fiável, prestigiado internacionalmente, respeitador dos tratados que subscreveu, dos direitos dos cidadãos e dotado de estabilidade jurídica. Questões como a da indução à morte do reitor Cancellier, ou do assassinato até hoje não elucidado de Marielle Franco, não são toleráveis. E é claro que a eventual continuidade do encarceramento do ex-presidente Lula constitui no mínimo uma herança envenenada para o novo presidente.


Não pode haver defesa dos interesses nacionais se não se impuser uma ideia que não parece ter criado raízes neste país: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”. Trata-se do artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos. “Todos os seres humanos”, os nacionais e os que não o são: não pode haver nacionalismo legítimo se não for baseado num humanismo de âmbito universal, se o ódio e o racismo não forem banidos.


Para que o Brasil volte ao concerto das nações é preciso que os brasileiros, que gostam de raciocinar em termos de economia doméstica, se convençam de que não existe desenvolvimento apenas para alguns. O nosso livro, publicado há apenas três anos, além de apontar as falhas do modelo econômico então vigente, indicava algumas saídas. Todas elas implicam na recusa de uma acumulação de riqueza como a que reina no Brasil, insustentável em qualquer país civilizado. Todos os brasileiros são feitos dos mesmos ingredientes, o calor do forno é o mesmo para todos, não há como saírem no mesmo tabuleiro, de um lado pipocas, do outro as mais finas pâtisseries parisienses. Não adianta se fechar em condomínios privados: o condomínio se chama Brasil, e o mundo não espera pelos que querem voltar ao século 19.

* Pesquisador; ex-superintendente executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento

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