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A dor da memória como fio condutor na aula-performance 'Cérebro Coração'

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Era para ser um exercício pessoal, dolorido, que ajudasse a refletir sobre as dores que machucavam o coração. Mas as observações que Mariana Lima escreveu para si acabaram ganhando vulto, nomenclatura e estrutura dramática até se tornar Cérebro_Coração, aula-performance que estreia nesta sexta-feira, 24, no Sesc Belenzinho.

"Quase não aconteceu por ser pessoal demais", conta a atriz, que aqui também assina a dramaturgia. Quer dizer, ela prefere a função de organizadora, pois vários foram os textos lidos e discutidos que inspiraram esse delicado trabalho.

É preciso voltar no tempo para entender melhor o processo. Mariana sofreu uma crise pós-parto em 2004, no mesmo momento em que perdeu o irmão caçula, de 10 anos, que não resistiu a um traumatismo craniano após ser atropelado. O coração implodiu e a cabeça perdeu o prumo. Dores profundas foram amenizadas com uma escrita incessante em cadernos acessados apenas por ela. Enquanto buscava respostas, ela passou a ler tratados sobre neurociência a fim de entender o funcionamento da falibilidade do cérebro ao mesmo tempo em que devorava clássicos memorialísticos, como Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust.

Aos poucos, as intensas linhas de raciocínio foram compartilhadas com outra grande atriz, Isabel Teixeira, com quem Mariana mantém uma estreita amizade pessoal e profissional. "Há sete anos, ela criou uma personagem, uma escritora chamada Lola Madrid, para quem certo dia enviei um recado dizendo que eu estava em uma sala de ensaio. Lola aceitou a provocação e me respondeu com uma carta-bomba. Nasceu uma troca de mensagens que resultou em um texto dramático, Câmera Escura, que apresentamos para alguns amigos e depois ficou guardado."

O processo foi retomado anos depois, agora incentivado por Enrique Diaz e Renato Linhares, que fizeram uma série de sugestões. "Eu acrescentava Proust, trechos de Clarice Lispector e também falas minhas", lembra Mariana. Nascia Cérebro_Coração, espetáculo com perfil de aula.

Assim, a primeira ideia foi apresentar o trabalho ainda em fase de ensaio em escolas públicas. "O projeto nasceu justamente com essa vocação, a de ser uma aula, mas com fatos imprevistos", observa Mariana, que o apresentou para alunos do Ensino Médio em oito escolas da Rede Estadual do Rio de Janeiro (São João de Meriti e Nova Iguaçu). Não havia nenhuma maquiagem cênica, ou seja, Mariana se parecia mesmo com uma professora, contando apenas com a força da palavra, o que confundiu diversos alunos. "Muitos nunca tinham visto uma peça de teatro e não foi fácil vencer essa barreira", relembra a atriz. "Ao mesmo tempo, foi uma experiência forte, transformadora, e, da conversa com eles, o espetáculo ganhou maioridade."

Assim, a cenografia criada por Dina Salem Levy reproduz o ambiente escolar a fim de que se elimine (ou, ao menos, diminua) a impressão de que se trata de uma relação palco/plateia.

Aos poucos, Mariana foi se acostumando com a exposição de sentimentos e isso se notava no texto, que inicialmente trazia uma forte presença do trabalho do artista cearense Leonílson Bezerra (1957-1993). "Ele mostra a fragilidade de seu coração por meio de suas obras. Existe um invólucro que é a sua própria arte", explica Mariana que, à medida que diminuía sua insegurança por se expor tão desbragadamente, substituía trechos criados por Leonílson por frases suas. "Mas segui seu caminho, que é explorar a própria biografia de um modo afetivo."

Apesar de já ter apresentado o espetáculo em uma temporada no Rio de Janeiro, Mariana ainda se sente fragilizada e, terminado o espetáculo, precisa se recompor emocionalmente. "Não tenho desejos e inclinações messiânicas, de querer expor a minha verdade. O espetáculo é mais um compartilhamento de perguntas do que de respostas. Tem mais a ver com expor a falha do que expor certezas e pensamentos bem acabados", sugere.

De fato, há alguns questionamentos no texto de Mariana que, ao partir de verdades científicas, muitas vezes vistas como inquebrantáveis, ela compartilha dúvidas, expõe pensamentos, fragilidades e verdades ambíguas. Sob seu comando seguro, o teatro se confunde com uma sala de aula para se tornar um lugar de trocas afetivas e de onde jamais se sai da mesma forma que se entrou.

CÉREBRO CORAÇÃO

Sesc Belenzinho.

Sala de Espetáculos. Rua Padre Adelino, 1000. Telefone: 2076-9700. 6ª e sáb., 21h30. Dom., 18h30. R$ 30. Estreia 24/8. Até 23/9

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arte | cultura | teatro