ARTIGOS

Uma DR cívica. Só a separação nos une?

Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 05/05/2024 às 07:02

Alterado em 05/05/2024 às 09:28

Quem ama sabe. Uma DR (discussão sobre a relação) é sempre um sintoma de que alguma coisa vai mal. Ninguém precisa discutir a relação nos tempos da paixão, do “só vou se você for”.

A DR surge depois, quando os encontros mais atritam do que deslizam, quando os silêncios se aprofundam, quando a distância vai-se impondo dengosa, quando a "dor de cabeça “ é uma desculpa esfarrapada como aquele aviso dos botequins de minha juventude :“ fiado só amanhã”.

A DR quase sempre é tão inoportuna quanto uma chamada de celular com um impertinente jeitinho de cobrança de dívida vencida ou de hipoteca em atraso. Há o temor de que acabe em rusgas, choro, imprecações, divórcio, partilha, inventário.

Mas conheço quem as fez. E delas saíram revigorados. Voltaram a tomar banho juntos, como se o chuveiro fosse uma cascata de felicidade, a lembrar que até cataratas podem ter sete quedas.

Há, claro, os cretinos, que fazem da DR uma espécie de ritual do masoquismo e são incapazes de perceber que em toda relação o abuso é simplesmente, digamos, abusivo. E estas DR são quase sempre um passaporte para a melancolia quando não para o ódio.

Feito este intróito, me pergunto se não podemos transpor a DR sentimental para uma DR cívica. Não creio que o importante agora seja atribuir culpas ou considerar que só há uma única verdade. Cada vez mais me convenço que hoje aqui no Brasil discutimos o irrelevante e deixamos de fora o essencial.

A primeira cautela que deveríamos tomar é a de analisar se os problemas que nos parecem intransponíveis são efetivamente brasileiros ou se derivam de um emaranhado de conceitos políticos, econômicos ou culturais que se adaptam a nós como um pret-à-porter de baixa qualidade, em que os ajustamentos necessários ultrapassam em muito a arte de um aprendiz de alfaiate.

Aqui não resisto a fazer uma pergunta talvez audaciosa. Será que o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil? O que é bom para a China, será bom para o Brasil? Entrar na OTAN é bom para o Brasil?

As perguntas poderiam ser multiplicadas, mas antes de se transformarem num debate estéril e raivoso, seria conveniente estabelecer que não são perguntas fúteis. Durante os últimos 44 anos, de 1980 até hoje, vivemos com a quase-certeza de que havíamos atingido o que se convencionou chamar o fim da história, cujo marco essencial foi a queda do muro de Berlim.

Em nome desta concepção, a ideologia que dominou nossa vivência no Ocidente foi a irmandade siamesa da Globalização com o neoliberalismo. Em função desta ideologia, vivemos crise pós crise até culminar com a grande crise de 2008, dita financeira, da qual não saímos até hoje. A par disto, estamos a ver uma crise sem igual das liberdades democráticas em países como os Estados Unidos da América a nos dar medo de uma terceira guerra mundial.

Convenhamos que a disparidade das rendas entre ricos e pobres aumentou de forma universal. Os estudos feitos, dentre outros, por Piketti, nos mostram que a injustiça social tende a aumentar e não a diminuir. A crise hipotecária da classe média americana foi em grande parte decorrente da tão decantada liberdade do mercado sem o controle do Estado.

Hoje há quem ainda defenda que as liberdades cívicas não devem interferir na chamada desregulamentação dos mercados e que o autoritarismo deve ser prioritário diante dos preceitos democráticos. Geralmente, quase todos nas listas das mais desbocadas fortunas do mundo.

Só uma DR cívica, levando em conta a história de nosso país, suas necessidades e esperanças, poderá nos colocar diante de nosso real destino. Tenho a ligeira impressão de que nosso ódio dos últimos anos, além de penoso, fratricida, é fruto de obra perversa de neocolonialismo. Ou até de necropolítica.

Acontece que o Brasil não é, nunca foi, e não tem razão nenhuma de se tornar o paraíso dos gangsters . Ou dos Zumbis.

Vale uma DR.