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Delação premiada: criminosos privilegiados

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Em decisão serena e bem fundamentada, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski negou a homologação e devolveu à Procuradoria Geral da República um acordo de colaboração premiada firmado entre a Procuradoria e o marqueteiro Renato Pereira. Em seu despacho assinalou o eminente Ministro que os termos do acordo devem ser revistos, porque nele foi fixada uma pena como se a Procuradoria fosse órgão julgador, concedendo ao delator benefícios exagerados. Como deixou expresso em seu despacho, “não é lícito às partes contratantes fixar, em substituição do Poder Judiciário e de forma antecipada, a pena privativa de liberdade e o perdão de crimes cometidos pelo colaborador premiado”.  No referido acordo foi fixada uma pena de quatro anos de reclusão e foi concedido o perdão judicial de crimes cometidos pelo delator, além de ser concedida a este autorização para viagens internacionais, desde que a trabalho e mediante aviso prévio. E no mesmo despacho o Ministro determinou que a Polícia Federal investigue o que o delator referiu, no acordo de delação, como “vazamentos ilícitos”, além de determinar a retirada do sigilo dos termos do acordo.

Reagindo com patente indignação a essa decisão do Ministro Lewandowski, a Procuradora Geral da República, Raquel Dodge pediu a restauração imediata do sigilo, alegando que o despacho do Ministro Lewandwski não levou em conta a segurança do delator, além de comprometer o bom êxito das investigações. E com isso estaria sendo violada a Lei 12.850, que estabelece o Acordo como meio de coibir o crime organizado. Em sua manifestação, a ilustre Procuradora Geral limitou-se a tratar da questão da quebra de sigilo, não fazendo referência à decisão de devolver o acordo à Procuradoria Geral da República para eventual revisão dos termos do acordo, retirando ele as cláusulas apontadas como ilegais por exorbitarem da competência da Procuradoria.

A delação premiada é um artifício legal de conveniência muito duvidosa, pois, como já foi assinalado por eminentes juristas, existem vários aspectos que podem influir na delação, como, por exemplo, o delator está sofrendo restrições pelo simples fato de ser objeto de investigação criminal, o que deixa dúvidas quanto à espontaneidade da delação. É óbvio que o delator fará denúncias que sabe que será do agrado dos investigadores, embora muitas delas não sejam verdadeiras. A par disso, as compensações dadas ao delator, que, de alguma forma, está envolvido na prática de crimes, têm sido exageradas e em alguns casos manifestamente inconstitucionais. Com efeito, tendo em conta os princípios e as normas constitucionais e a legislação que trata da punição dos criminosos não há fundamento jurídico para deixar de punir alguém que confessou a prática de um crime. Essa isenção de punição seria um privilégio dado a criminosos, o que, evidentemente, afronta princípios e normas do Estado Constitucional de Direito. 

A inconstitucionalidade do excesso de concessões foi posta em evidência quando o ex-Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, celebrou acordo de delação premiada com os irmãos Joesley e Wesley Batista, que confessaram sua participação muito ativa na prática de vários crimes. Apesar da confissão, o acordo de colaboração continha uma cláusula em que, expressamente, o Procurador Geral assumia o compromisso de não oferecer denúncia pelos crimes confessados pelos delatores premiados, ou seja, pelos criminosos confessos que se tornavam “criminosos privilegiados”. No entanto, a Lei 12850, que introduziu no sistema jurídico brasileiro a colaboração premiada contém vários dispositivos que limitam a concessão de benefícios ao delator.

Naquela oportunidade, apontando e rejeitando os excessos do Procurador Geral na concessão de benefícios aos criminosos confessos, assinalou o preclaro Ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello que na colaboração premiada quem fixa os benefícios ao colaborador  é o Poder Judiciário, que, segundo assinalou, deve homologar mas pode rever o acordo, podendo sustar os excessos e impedir que sejam concedidos a criminosos confessos favores e privilégios exageradamente generosos, exorbitantes dos permissivos legais. Vai nessa mesma linha a fundamentação do Ministro Ricardo Lewandowski, opondo-se aos termos do acordo celebrado pela Procuradora Geral Raquel Dodge: incumbe exclusivamente ao magistrado responsável pelo caso avaliar os termos da delação e fixar a medida dos benefícios a serem concedidos ao delator.

Em conclusão, a delação premiada é, pelo menos, muito ambígua quanto às suas conveniências, mas, a par disso, e sobretudo, é de duvidosa constitucionalidade se isentar de punição um criminoso confesso, pois cria a figura do “criminoso privilegiado”, contrariando os princípios constitucionais consagrados, como o da igualdade de todos perante a lei, que, em princípio, opõe-se à criação da categoria de “criminosos privilegiados”. A par disso, é também de fundamental importância lembrar que a Constituição brasileira consagra a separação dos Poderes, cabendo aos membros do Poder Judiciário, cujas competências específicas são estabelecidas em lei, proferir julgamentos, fixando as penas ou medidas punitivas ou restritivas do exercício de direitos, como especificado em lei, ou ainda absolver um acusado, livrando-o de punição após processo regular. Mas, sem qualquer dúvida, essas competências são exclusivas do Poder Judiciário, não havendo fundamento legal para que integrantes de outros Poderes substituam os magistrados judiciais no exercício dessas competências.

* jurista