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A volta do ovo da serpente?

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O famoso filme de Ingmar Bergman, de 1977, é considerado uma das melhores interpretações cinematográficas do surgimento do nazismo e suas posteriores e funestas consequências para a Alemanha e o mundo inteiro. 

Denotando meticulosa pesquisa histórica feita pelo grande cineasta sueco, o filme mostra com extrema fidelidade e realismo os primeiros passos de uma sociedade que já se encontra dividida e ameaçada.  Deixa entrever o insidioso e silencioso processo que desembocaria no nacional-socialismo a partir de 1933 e resultaria no mais monstruoso genocídio que a humanidade já conheceu: o holocausto nazista. 

Em seu filme, Bergman profetiza, a partir do que está acontecendo na sociedade alemã, aquilo que a espera.  E compara a um ovo de serpente.  É inesquecível a frase pronunciada pelo personagem do Dr. Hans dirigida ao trapezista judeu Abel Rosemberg já no final do filme:  qualquer um que fizer o mínimo esforço poderá ver o que nos espera no futuro. É como um ovo de serpente. Através das membranas finas pode-se distinguir o réptil já perfeitamente formado. 

Trata-se de um sentimento parecido àquele que experimentamos ao ler a surpreendente notícia de que um hotel suíço de uma estação de esqui – o Aparthaus Paradies – afixou em suas dependências um cartaz com a seguinte advertência: “Aos nossos hóspedes judeus – mulheres, homens e crianças – por favor tomem uma ducha antes de nadar... Se quebrarem as regras serei forçado a fechar a piscina para vocês. Obrigado por sua compreensão. “

Como se não bastasse, na porta do freezer do hotel, onde os hóspedes judeus haviam pedido para guardar sua comida “kosher”, de acordo com as regras de sua religião, apareceu outro cartaz, também dirigido apenas aos hóspedes judeus: "Aos nossos clientes judeus: podem ter acesso ao freezer somente nos seguintes horários: das 10h às 11h e das 16h30 às 17h30. Espero que compreendam que nossa equipe não gosta de ser incomodada o tempo todo".

A primeira reação veio imediatamente, provavelmente por parte de outro hóspede que se sentiu indignado com a recomendação.  No mesmo cartaz da piscina, na parte de cima, foi escrito: “Eu não sou um hóspede judeu e achei isso muito racista”. A partir daí o cartaz foi fotografado, espalhado pelo mundo inteiro, viralizado nas redes sociais.  

Israel exigiu desculpas oficiais, classificando o ato de antissemita da pior espécie. O ministério suíço das Relações Exteriores afirmou em um comunicado que destacou ao embaixador de Israel que a Suíça "condena o racismo, o antissemitismo e qualquer discriminação".

Poderia ser apenas um sintoma isolado.  Mas não será ingenuidade considerá-lo assim?  Não será ingenuidade extrema, uma semana após os episódios de Charlottesville, onde um jovem militante da supremacia branca investiu com um carro violentamente contra ativistas antirracistas.  Os grupos da direita radical, defensores da supremacia branca, se opuseram ao projeto de retirar da cidade a estátua do general que lutou a favor da escravidão.  Houve mortos e muito feridos. 

Os supremacistas brancos e direitistas marcharam pelas ruas da pacata cidade da Virginia carregando tochas e incluindo em seu ódio discriminatório não apenas os negros, mas igualmente gays, judeus e outros grupos que, há pouco mais de 70 anos, Hitler também perseguia no seu intento de limpar a Europa de tudo e todos que não compusessem a raça ariana, “única pura e digna de viver”. 

Ao lado desses há outros sintomas.  O renascimento dos partidos direitistas na Europa, que estiveram perto de ganhar as eleições presidenciais na França.  O repúdio de tantos países europeus à entrada dos imigrantes, que são em sua quase totalidade de outra ascendência, outra etnia, outra religião.  O mesmo repúdio crescendo em surpreendente escala nos Estados Unidos de hoje, com correspondente legislação que o sustenta. 

No Brasil, protesta-se contra o sistema de cotas. Os negros e os pobres sofrem as consequências da crise mais do que todos e são obrigados a conviver com o desmentido de que a escravidão foi abolida. Os negros são orientados a entrar pela porta de serviço em prédios de bairros de classe média alta. As vítimas do tráfico são em geral jovens e negras.  A Lei Áurea parece ter sido algo episódico, que não chegou ainda a acontecer. 

O preconceito é algo diabólico porque situa determinados grupos de seres humanos em um degrau inferior de humanidade.  E lança-se sobre eles e elas várias atitudes negativas a priori que vão limitar sua cidadania e sua pertença na sociedade em que vivem.

De onde se tirou que os judeus necessitam mais de banho do que outros?  Por que os negros ensombreceriam a imagem da nação mais poderosa do mundo? Qual a fonte da concepção de que os migrantes entram nos países mais desenvolvidos do primeiro mundo para roubar o emprego dos cidadãos nativos e locais? 

A imensa dificuldade de lidar com a diferença do outro, com sua identidade que não é a minha, começa a tomar corpo e tornar-se um fenômeno coletivo com avassaladora força destrutiva. Ingmar Bergman olhava para o passado recente de seu continente ao fazer seu célebre filme.  Hoje somos convocados a olhar o presente e procurar perceber a silhueta do réptil que se delineia na parte interior do ovo que choca a catástrofe. 

Não é possível que a humanidade não haja aprendido as mais amargas lições pelas quais passou na tentativa homogeneizadora racial. Não bastaram continentes destruídos, milhões de mortos, a memória macabra dos campos de extermínio? Não por nada a imagem da serpente no livro do Gênesis é a personificação do demônio que tenta o ser humano. Deus queira tenhamos forças para esmagar a cabeça da serpente no seu nascedouro.  Somente assim poderemos seguir perseguindo a vocação humana que é a nossa. 

* A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc). Professora do departamento de teologia da PUC-Rio