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É preciso reconhecer a centralidade do caráter nacional do problema fluminense

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Quando se faz um diagnóstico é fundamental se separar a raiz do problema (vulnerabilidades latentes) dos fatores desencadeadores (agravamentos conjunturais). Os defensores do “pacote de maldades” colocam que a crise econômica nacional foi apenas um fator secundário que acelerou a evidência de um problema de gestão estadual: uma “gastança” com folha de pagamento que leva a um cumulativo descompasso entre receitas e despesas. Desse modo, seu ponto principal é a crítica ao que chamam de “rigidez orçamentária” em uma série de despesas obrigatórias que reduz os graus de liberdades para o ajuste fiscal.

No geral, opositores ao pacote tendem a apontar que o problema não está centralmente no lado da despesa, e sim no lado das receitas. Uma interpretação corrente advoga que o problema de receita é principalmente por isenções fiscais. Assim, curiosamente, adota-se uma dimensão estratégica semelhante à visão dos defensores do pacote: a raiz está na gestão estadual. A diferença é que seria por renúncia à receita e não por uma suposta "gastança" irresponsável. Dessa forma, também semelhante com a visão dos defensores do pacote, a crise econômica nacional é mencionada como um aspecto conjuntural apenas, logo, um fator secundário pouco enfatizado.

Caso se considere que estes são os dois polos opostos do debate, há então um “ponto cego” de convergência: a opção intencional por não nacionalizar a crise no Rio, o que deixa transparecer os respectivos projetos de poder. Um projeto é ligado a uma moral técnica que eleva a LRF a uma cláusula pétrea acima de outros valores constitucionais, de modo que será a constituição que terá que se adaptar a suas determinações. Nessa via, os favoráveis ao pacote visam tornar o Rio um contraexemplo útil para um conjunto de reformas e políticas mais rígidas de arrocho fiscal emanadas dos interesses que tomaram de assalto às instâncias federais. Assim, esperam despolitizar uma série de questões que pudesse estimular aspirações democráticas mais profundas, logo, incompatíveis com gestões “blindadas” ao apelo popular. 

Outro projeto é ligado a um moral social que parti de uma crítica ao capitalismo mirando idealizar espaços de utopia, de modo que não avança sobre formas efetivas de comandá-lo sob grandes blocos de capitais nacionais e complexos regionais integrados em um sistema de nacional de produção. Dessa forma, os ditos oposicionistas visam tratar o problema descolado de sua essência econômica. Nessa linha, isenção fiscal não é discutida como uma política econômica, e sim como um “véu” de uma corrupção sistêmica. Assim, tratam o problema como combustível da própria disputa político-partidária no nível estadual, logo, não vocalizando e liderando um pleito pluripartidário a respeito da defesa de interesses regionais do Rio.

Uma pessoa mais desavisada que desejasse acompanhar a questão da crise financeira estadual poderia achar que o problema só permite essas duas interpretações morais. Minha interpretação, que se opõe ao “pacote de maldades”, não resume a disputa por qual moralidade a escolher: seja a técnica ou seja a social. Isso porque a crise econômica nacional está longe de ser só um fator secundário. E se ela é algo central, então a crise no Rio tem que ser urgentemente nacionalizada para a partir disso enfrentar suas especificidades fundamentais.

Ao invés de meros casos de gastança ou renúncia, a raiz do problema é mais complexa e está nas características da debilidade produtiva estadual. Essa debilidade, que chamo de “estrutura produtiva oca”, impede que as receitas tenham outro comportamento (inclusive, reduzir dependência das rendas do petróleo e gás). Essa debilidade que leva a uma grave recessão ter efeitos mais que proporcionais sobre a região. Uma crítica mais adequada às isenções fiscais seria buscar mensurar o quanto evitaram o agravamento ou não desse problema estrutural. Criticar isenções sem focar na avaliação da desindustrialização e cobrar sua reversão é retirar a essência do debate que cerca a questão. Portanto, isenções é um problema rigorosamente para se tratado no debate sobre política industrial.

O equívoco mais retumbante para uma visão progressista seria achar que “a melhor política industrial é não ter política industrial”, ou, traduzindo para o caso específico, que a melhor política de incentivos fiscais é não ter política de incentivos fiscais. Uma significativa redução de isenções exige superar a guerra fiscal, um debate importantíssimo, mas que envolve uma reordenação do pacto federativo, logo, um tratamento nacional e nunca isoladamente na escala estadual. No mais, melhores encaminhamentos da questão na escala estadual se voltariam a uma discussão de como resgatar e atualizar uma estrutura permanente de planejamento integrado e planificação setorial.

Ao criticar a superestimação dada aos incentivos, não se quer dizer que não haja problemas de gestão estadual. Ao contrário, o agravamento das condições se evidencia muito mais por uma exposição a um endividamento temerário e a forma pouco contundente que lida com disputas financeiras: seja com a pouca recuperação da dívida ativa de empresas, seja com não priorização de reparações a exigir do governo federal (exemplo: Lei Kandir, defasagem no valor de royalties etc.). Soma-se a forma como mistificou o problema da previdência, ocultando: descapitalizações realizadas, antecipações desastradas de receitas, e ausência de um plano de amortização que considerasse o custo de transição na fase atual de vigência de dois modelos organizacionais.

É preciso ter claro que o dinheiro de corrupção já apurado não “fecha a conta” do rombo total das finanças públicas. Por essa razão, apela-se à hipótese heroica que maior parte das isenções é no final das contas também corrupção. Contudo, as cifras alardeadas de incentivos estão sob forte controvérsia que variam em um intervalo enorme entre levantamentos do TCE e do governo estadual. Mesmo que as maiores cifras estivessem corretas, o que é improvável (por deduções não contabilizadas), um processo de recuperação desse dinheiro teria que ser mediado pelos seus impactos sobre as decisões de investir e produzir de modo a não agravar uma economia regional já em frangalhos.

Desse modo, saídas da crise financeira atual dependem não só de maior mobilização reivindicatória, mas de diagnósticos com sentido mais prático para o enfrentamento do problema. É fundamental nacionalizar a crise no Rio e cobrar as responsabilidades do governo federal. Afinal, ele que possui dinheiro suficiente para resolver os efeitos da crise nacional sobre os estados e municípios.

Sobre esse ponto, ganha pertinência comparar a situação do Rio com o que transcorre na peça "O Mercador de Veneza" de Shakespeare. Nessa peça, o usurário Shylock exige cobrar uma letra que permite cortar uma libra de carne do fiador da dívida. Para justificar o absurdo se agarra a lei que exige respeito aos contratos e ameaça dizendo que se não for respeitada a cobrança todo o sistema legal e de negócios de Veneza estaria sob insegurança jurídica. Apelam a clemência e irresoluto ele rebate que só exige a lei e o que está na letra é seu de direito. O revés ocorre quando o juiz(a) chamado reconhece seu direito a um pedaço de carne pela dívida, porém nada no trato firmado o autoriza a sangrar. Se sangrar está atentando contra a vida de um cidadão e a mesma lei se vira contra ele.

Shakespeare assim discute do que se trata a justiça que concebe um direito desde que este seja ponderado pelos riscos que impõem a outros direitos assegurados. E mais, que o direito à vida é superior a qualquer direito financeiro que o ponha em risco. Há uma frase central na peça do juiz(a) se referindo ao usurário: "reclamaste justiça; fica certo de que terás justiça, talvez mais do que desejaras".

Voltando ao Rio, os servidores estaduais indiretamente se tornaram fiadores da dívida estadual. O governo federal age como Shylock a cobrar sua dívida pois a lei lhe permite, mesmo que isso significa "cortar na carne" e por em risco condições de sobrevivência humana. Diante disso, o que se pode pedir que se fizesse justiça mais do que o governo federal imagina. Atualmente, a dívida estadual é de cerca de R$ 107 bilhões, sendo que R$ 73,6 bilhões diretamente com a União. Os principais itens são associados aos acordos de renegociação da dívida do final da década de 90, repara-se que até hoje não foram quitados embora o saldo atual (o que falta pagar e não tudo que já foi pago) signifique mais que o triplo do valor contratado. Em valores de janeiro, isso garante a União uma "mesada" de 127,7 milhões.

De fato, está de acordo com a lei a União cobrar uma dívida, porém o mesmo governo estadual é credor de uma dívida ativa de diversas empresas que se refere a impostos não pagos. Fazendo o encontro de dívidas, essa dívida ativa empresarial está em torno de R$ 69 bilhões, valor muito próximo à dívida do Estado do Rio com a União (lembrando, R$ 73,6 bilhões). Boa parte dessa dívida empresarial é considerada impagável, sendo que a taxa de recuperação é bem baixa pois depende do sistema jurídico, o mesmo que garante o direito da União.

Primeiro detalhe, as duas empresas com maior volume de dívida ativa são empresas estatais federais: Petrobrás (R$ 4,4 bilhões) e Correios (R$ 1,6 bilhões). Sendo o governo federal acionista majoritário delas poderia ser questionado. Segundo detalhe, a dívida ativa de empresas do ramo de Petróleo e Gás está em torno de R$ 8 bilhões (incluindo Petrobrás). Contudo, é o mesmo setor que pressiona a ANP para retardar a atualização da tabela dos valores a ser pagos de royalties e participações especiais ao Governo do Rio. Isso gera anualmente uma perda estimada de R$ 2 bilhões, fora valores retroativos a serem exigidos. Não há controvérsia, basta que se cumprisse a lei. Existem outros pontos a serem discutidos como reparações pela Lei Kandir, bem como retomar a discussão sobre as perdas pelo ICMS do petróleo não ser cobrado na origem. Todas questões solenemente ignoradas por Shylock que anseia por sua libra de carne e o governo estadual respalda com discurso de que o servidor estadual precisa fazer "sacrifícios".

A justiça precisa cumprir a lei. Agora, cabe a pergunta: qual lei se reconhece? Para Shylock, basta a moral de tesouraria. Contudo, qual direito é soberano diante de uma tensão federativa explícita entre entes governamentais e um conflito distributivo que pesa em favor de alguns grandes interesses? Por essa razão, a ênfase reivindicatória deveria estar em um problema de debilidade produtiva que foi explicitado por um cenário de enorme tensão federativa que agravou os efeitos da exposição governamental a um endividamento temerário. Qualquer outra condução mesmo que se oponha ao pacote não oferecerá condições objetivas de barrá-lo. Será “enxugar gelo” desejar que caísse um (des)governo estadual sem mudar primeiro a dimensão estratégica do diagnóstico que não foca em nacionalizar a questão fluminense.

* Bruno Leonardo Barth Sobral é Professor da FCE/UERJ e autor do livro “Metrópole do Rio e Projeto Nacional” (Garamond)