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O que permanece intacto 

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A tradição é, no sentido etimológico, o que foi dado, uma vez por todas, que se ajusta à vida atual. Ela exprime a parte imutável da natureza humana, estruturando as maneiras de ser fundamentais. Maneiras de situar em relação aos outros, quer nas situações quotidianas ou nas situações excepcionais. 

A tradição tem um papel-chave na articulação dos referenciais de ação. Em geral, as pessoas pesam os cursos de ação possíveis em termos de consideração de futuros prováveis, ou possíveis. E a tradição ordena a consideração do tempo de uma maneira que restringe a abertura de futuros contrafactuais. 

Experimentamos nossas capacidades para a ação e, ao fazê-lo, tornamo-nos conscientes de que iniciamos processos; parece que somente assim podemos conhecer o que nós mesmos fizemos. Nada é significativo em si e por si, o processo é que torna significativo o que porventura carregue consigo.

Toda experiência humana é mediada pela socialização, especialmente pela aquisição da linguagem. A linguagem permeada de memória permite retrabalhar os eventos passados, interpretando-os. Pela primeira vez na história, a capacidade humana para a ação começou a dominar todas as outras.

Encontramos em Santo Agostinho a noção de que história - o que possui significado e faz sentido - pode ser separado dos eventos históricos isolados relatados numa simples narrativa cronológica. Assim, mais tarde, pensar com Hegel que a verdade se pode desvelar no próprio processo temporal.  

Ancorado na tradição cristã, Santo Agostinho introduziu-nos à ideia de uma cidade futura onde, mesmo após a morte, homens e mulheres continuariam a viver em comunidade. A própria linguagem veio em seu auxílio: em latim, a palavra “viver” coincide com “estar na companhia de outrem”.

Tomamos consciência da liberdade, ou do seu contrário, em nosso relacionamento com os outros. As comunidades políticas antigas foram fundadas com o propósito expresso de servir aos livres. O cidadão da polis não é coagido por necessidades físicas da vida, tampouco sujeito à dominação do outro. 

É este o âmbito em que a liberdade constitui uma realidade concreta, tangível em palavras que podemos escutar, em feitos que podem ser vistos e em eventos que podem ser comentados, relembrados e transformados em estórias antes de se incorporarem ao fim ao grande livro da história.

Assim que a política deve ocupar-se com a manutenção da vida e a salvaguarda de seus interesses. Nossa vida política, a despeito de ser o espaço destinado à ação, faz parte desses processos que denominamos históricos, que tendem a se tornar tão automáticos quanto os processos naturais ou cósmicos.

Mesmo quando a política do país se faz impotente para interromper processos automáticos, “a experiência nos diz que acontecimentos são milagres não é arbitrária nem artificial”, diz H. Arendt. O que permanece intacto (em meio ao automatismo) é nossa capacidade de recomeçar – vide Chapecó.

* Engenheiro